Para que serve o Enem afinal?

Este mês, tivemos mais uma edição do Enem, ou Exame Nacional do Ensino Médio. Esse exame cresce a cada ano em número de participantes e já é a principal porta de entrada para as universidades brasileiras. Porém, quando foi criado, em 1998, o Enem tinha por objetivo avaliar a qualidade do ensino médio, tanto público quanto privado, em nosso país. Assim como o Enade, a Prova Brasil e outros mecanismos de mensuração qualitativa, o Enem visava permitir o planejamento a médio e longo prazos de políticas para a educação, apontando deficiências e permitindo a comparação do desempenho dos estudantes (e, por tabela, da qualidade das escolas) entre estados, municípios e até entre o Brasil e outros países, que também fazem suas medições periódicas.

No entanto, desde 2009, quando a nota do aluno no Enem passou a ser aceita como parte do processo seletivo para ingresso em universidades públicas e privadas, esse exame se tornou um megavestibular, em que o candidato concorre a vagas em várias instituições ao mesmo tempo.

Se, por um lado, isso foi benéfico aos estudantes que concluem o ensino médio e pretendem seguir seus estudos na universidade, já que podem prestar um único exame em vez de ter de se submeter a inúmeros concursos, por outro lado, essa nova função do Enem o descaracterizou como um instrumento de medida da qualidade do ensino secundário, pois, assim como já acontecia com os vestibulares tradicionais, hoje o aluno faz cursinho para se preparar para o Enem (e isso alimenta a milionária indústria dos cursinhos). Portanto, o que se mede atualmente através do Enem não é a qualidade do ensino médio, mas a capacidade dos cursinhos de ensinar macetes que permitam ao candidato um bom desempenho na prova – mesmo que a sua trajetória acadêmica até então tenha sido medíocre. Qualquer conclusão que se tire do resultado desse exame não retratará com exatidão a realidade da educação básica brasileira, mas talvez a dos cursinhos pré-vestibulares, instituições de ensino paralelas, não oficiais e não reconhecidas pela legislação educacional.

Ao mesmo tempo, o Enem não deixa de ser um exame vestibular, que, como todos os outros, faz com que o estudante tenha de decidir em poucas horas todo o seu futuro: se será um profissional de nível superior ou se ficará no nível médio; se fará uma carreira em ciências ou em humanidades, se atuará no mercado ou no magistério, e assim por diante. A grande crítica que sempre se fez a esse tipo de processo é que não se pode avaliar por uma única prova toda a trajetória escolar de uma pessoa; afinal, o insucesso num exame pode ser fruto de nervosismo ou indisposição física e não necessariamente de falta de preparo. Consequentemente, o aluno pode perder um ano de vida por causa de uma simples dor de cabeça ou do atraso causado por um pneu furado.

É por essa razão que muitos países do Primeiro Mundo substituem o vestibular ou qualquer outra prova eliminatória por uma análise do histórico escolar do estudante: as notas que recebeu ao longo de toda a sua passagem pela educação básica é que dirão quão apto ele está para prosseguir seus estudos em nível superior. É claro que esse sistema também acarreta problemas. No Japão, não são raros os casos de suicídio de estudantes após uma nota baixa, que com certeza pesará negativamente em seu histórico escolar, fechando para sempre as portas das grandes universidades para esses alunos.

Além disso, no caso específico do Brasil, em que sobretudo o ensino básico público é muito fraco, até que ponto as notas que o estudante obteve em determinada disciplina refletem realmente o quanto ele absorveu de seu conteúdo?

Enfim, ainda não foi inventado o sistema ideal de avaliação de cursos nem o de admissão às universidades. Só temo que, com o dinheiro envolvido na indústria da preparação para o Enem, as distorções na nossa política educacional sejam cada vez maiores.

5 comentários sobre “Para que serve o Enem afinal?

  1. Uma das coisas que vai ser preciso mudar é a avaliação da capacidade redacional do aluno. A ideia de um texto dissertativo-argumentativo é boa, pois esse gênero avalia competências gerais, ligadas à habilidade de pensar bem, conhecer razoavalmente a gramática e expressar com exatidão as ideias. O problema é a padronização que o ensino desse gênero vem adquirindo. Em vez de ensinar a pensar e ter criatividade, grande parte dos professores prefere “amestrar” os alunos com fórmulas, macetes e até citações que eles devem decorar para inserir nos textos. Já li redações que obtiveram nota 1000 com citações totalmente desvinculadas dos temas, citações que aparecem graciosamente como se fossem a voz de uma autoridade. Instrui-se os alunos a usar operadores argumentativos desnecessários, como se isso fosse um atestado de rigor lógico. As propostas de intervenção são “cantadas”, envolvendo as clássicas referências à família, à escola, ao Estado, à mídia… O modelo da redação do Enem tem que ser repensado para que nossos alunos se livrem dessa bitola e voltem a perseguir, de fato, a competência redacional.

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    1. Com certeza, Chico! A partir do momento em que o Enem se transformou num vestibular, o objetivo dos alunos deixou de ser mostrar o que sabem e passou a ser obter a melhor nota possível para entrar numa universidade muito concorrida. E para atingir esse objetivo vale tudo. E os cursinhos sabem disso.

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  2. Preocupante, na minha opinião, é o fato de na prova de Língua Portuguesa não se cobrar mais conhecimento de concordância, regência, pontuação, colocação pronominal, entre outras coisas, como era no passado. Transformaram o professor de Língua Portuguesa num professor de textos. Para mim, quem é bom leitor consegue compreender ou interpretar bem qualquer texto. Por outro lado, sem conhecimento gramatical não pode sair um bom texto.

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    1. Concordo plenamente com você, Patrick. Antigamente, exigia-se domínio da gramática mesmo sem compreensão do texto. Hoje, exige-se leitura e compreensão do texto em detrimento da gramática. Para mim, o ensino de Língua Portuguesa não deveria ser nem tanto ao mar nem tanto à terra.

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  3. Exatamente isso! O Enem perdeu a sua característica de avaliar o ensino como um todo. Esta avaliação tornou – se enorme caça – níquel para os cursinhos, em contrapartida ao real objetivo de formar e informar o ensino público de qualidade. Infelizmente, o Enem só tem mostrado o quanto precisamos evoluir em equidade para o ensino superior. Vemos muitos concorrentes às universidades com defasagem de ensino e aprendizagem.
    Sua função principal está esquecida, isto é, investir no ensino e no professor.

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