Mentiras e inverdades

Boa tarde, Prof. Vejo os políticos se acusarem uns aos outros de estarem dizendo inverdades quando de fato estão é falando mentiras. Afinal qual a diferença entre uma mentira e uma inverdade? Obrigado,
Paulo César Lourenço

Caro Paulo, tanto a mentira quanto a inverdade correspondem a informações falsas, que não procedem, o que poderia nos levar a crer que são palavras sinônimas, mas não é bem assim.

Uma inverdade é apenas uma afirmação que não corresponde à realidade, o que pode ser fruto de equívoco ou ignorância. Já uma mentira tem sempre uma carga de intencionalidade, o desejo deliberado de enganar. Portanto, quem diz uma inverdade pode de fato acreditar no que está dizendo, ao passo que quem mente sempre sabe que está mentindo.

É claro que nem sempre dizemos uma mentira movidos de má-fé: às vezes mentimos até por compaixão, como, por exemplo, ao dizermos que está tudo bem quando não está apenas para não preocupar desnecessariamente nossos entes queridos.

Mas, no caso dos políticos, que se acusam mutuamente, alegar que o adversário está dizendo uma inverdade é apenas um eufemismo para acusá-lo de mentir. É que uma acusação direta requer provas, caso contrário configura calúnia. Mas todos sabemos que os políticos mentem descaradamente, e quem acusa o oponente de mentir com certeza também mente.

E se você também tem uma dúvida, mande-a para o e-mail de contato deste blog que responderei aqui neste espaço.

O que calma tem a ver com calor?

Nesse calorão que anda fazendo, é preciso beber muita água e manter a calma. Mas o que a calma tem a ver com o calor? Ao contrário do que possa parecer, tem muito a ver.

Tudo começa com o grego kaûma, “calor”, parente de palavras que deram em português cáustico, cautério e cauterizar, portanto termos que remetem à ideia de “fogo, queimar”. Kaûma passou ao italiano como calma, em que o u foi trocado pelo l por analogia com as palavras caldo, “quente”, e calore, “calor” — ocorreu aí a famosa pseudoetimologia, do mesmo modo como o nosso redemoindo virou rodamoinho por se acreditar que tenha algo a ver com rodar (afinal os redemoinhos são ventos que rodam).

Pois bem, o italiano calma significava originalmente o mesmo que o grego kaûma: calor. Mas, por uma metonímia do tipo “efeito pela causa”, passou a designar a pasmaceira provocada pelo calor, e daí quietude, falta de movimento, de agitação. Essa calma era especialmente a ausência de ventos no mar, a calmaria que impedia os navios de navegar ou os obrigava a utilizar remos. Daí para o sentido de tranquilidade enquanto ausência de tensão nervosa foi um pulinho. E daí também surgiram o adjetivo calmo e o verbo acalmar. Posteriormente apareceu o medicamento contra ansiedade chamado calmante.

Pois é, nestas noites quentes, abrasadoras, cáusticas, tem gente até tomando calmante para conseguir dormir.

Féria, feira, férias e feriado: o que essas palavras têm a ver?

Em novembro temos dois feriados próximos, a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra, sendo que, este ano, o segundo será um feriadão prolongado, e as pessoas já se preparam para viajar e curtir um pouco a vida fora das grandes cidades, em seus refúgios na praia ou no campo. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado — e consequentemente da palavra — era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”. E, por sinal, holiday é a contração de holy day, “dia santo”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

E a féria era originalmente o dinheiro arrecadado pelos comerciantes em um dia de feira. Daí que féria passou a significar o ganho diário de um profissional, a quantia ganha por ele durante uma diária de trabalho.

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs- (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com prudência nas estradas e moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto. E até a volta!

Uma correção e um brinde

Duas semanas atrás, apresentei aqui uma etimologia que depois constatei estar incorreta; por isso, hoje faço a retificação. Trata-se da expressão “não ter eira nem beira”, isto é, ser muito pobre. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que eira, do latim area, que também deu o português área, era uma espécie de roçado que os mais ricos tinham em suas casas e os pobres não. E beira era o beiral que supostamente cobria a eira. Supostamente porque é pouco crível que um pequeno beiral pudesse cobrir uma eira. O mais provável é que a palavra beira tenha entrado na expressão apenas para rimar com eira. Em resumo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente morava em péssimas condições.

A versão que apresentei no artigo anterior é bastante corrente entre os guias turísticos de cidades históricas brasileiras ao referirem-se às casas coloniais, mas infelizmente não corresponde à realidade. E o problema é que falsas etimologias às vezes enganam até os especialistas.

Mas vamos ao brinde: saber alguma coisa de cor é saber de memória, certo? Mas de onde vem a palavra cor, que só ocorre na expressão “de cor”? Em português medieval, cor, com o aberto, significava “coração”, do latim cor, cordis, donde o nosso cordial. Posteriormente, essa palavra foi suplantada pelo derivado coração, cujo sufixo ‑ção ainda não está bem explicado: alguns etimólogos o atribuem ao latim ‑tionem, sufixo que indica ação; outros veem aí um aumentativo de cor.

Mas por que saber algo de memória teria a ver com o coração se é no cérebro que armazenamos nossas memórias? É que os antigos não sabiam disso (não havia neurociência na época) e acreditavam que a sede dos pensamentos e sentimentos era o coração, afinal é ele que bate mais forte quando estamos emocionados.

Da expressão “saber de cor” saiu a mais extensa “saber de cor e salteado”, isto é, pulando partes, sem seguir a ordem em que as informações foram memorizadas.