Palavras estrangeiras inventadas em português

Parece incrível, mas no Brasil se inventam palavras… estrangeiras! Isso mesmo, não só enriquecemos constantemente o acervo léxico do português – e fazemos isso bem mais do que Portugal – graças às nossas gírias e às nossas mazelas (fumódromo, valerioduto, mensalão, petrolão, presidenciável, bolsa-estupro, brasiguaio são só alguns exemplos), como também empregamos termos estrangeiros com significado insuspeitado pelos legítimos criadores dessas palavras.

Na França, por exemplo, bombonnière é uma caixinha, geralmente de prata ou outro metal nobre, para guardar bombons; no Brasil, virou loja de doces. O cartaz publicitário de rua que conhecemos por outdoor em inglês se chama billboard. E game, que no Brasil é redução de videogame (isto é, videojogo), nos países de língua inglesa é qualquer jogo – futebol inclusive.

Alguns vocábulos têm história mais complexa. Handicap, que em inglês quer dizer “desvantagem, deficiência” (handicapped, por sinal, é “deficiente físico”), aqui no Brasil assumiu o sentido de vantagem, diferencial positivo. É que havia originalmente na Inglaterra um jogo de cartas chamado hand in cap (mão no gorro) em que se costumava esconder a mão dentro de um gorro ou boné para ocultar as cartas, especialmente se não se tinha uma combinação muito vantajosa (é o famoso blefe). A partir daí, passou-se a usar o termo handicap para designar competições em que alguns concorrentes, por ser mais fracos que os demais, começavam a prova já em vantagem. Portanto, vem daí a confusão entre o sentido original de “deficiência” e o de “vantagem”. Só que, nos países de língua inglesa, handicap é sempre deficiência, nunca vantagem. (Uma curiosidade: a própria palavra “vantagem”, do francês avantage, deriva de avant, isto é, sair em vantagem era dar a largada numa corrida já à frente dos demais.)

Outro termo bastante usado hoje em dia para denominar diferenciais positivos é plus (“Fazer esse curso pode dar um ‘plus’ na sua carreira”), de onde saiu o horrível pleonasmo “um ‘plus’ a mais”.

O universo da moda também é pródigo em palavras estrangeiras que ganharam novo significado entre nós. Exemplo disso é o termo fashion usado como adjetivo para designar o que está na moda (“Este batom é ‘fashion’”, “Comprei uma blusa super ‘fashion’”), quando em inglês, na mesma situação, se diz que algo é in (redução de in fashion, “na moda”).

Outra expressão típica da moda é “dar um up”, isto é, elevar a autoestima por meio de uma roupa ou maquiagem fashion. Não há em inglês nada parecido com give an up.

No Brasil, wafer é tanto o biscoito doce de massa fina, em geral recheado de creme, quanto aquele em forma de favo, que se come com doce de leite ou mel, e que muitos chamam de favo holandês, embora se origine da Bélgica. Só que, em inglês, o primeiro é realmente wafer, enquanto o segundo na verdade se chama waffle. Quem chamar waffle de wafer no exterior cometerá uma gafe.

Porém, o mais chocante são palavras estrangeiras usadas correntemente no Brasil e que efetivamente não existem em outras línguas – nem na suposta língua original. É o caso do nosso amado chope, que os bares em sua maioria ainda grafam chopp para ser mais fiéis às raízes germânicas da bebida. O problema é que essa palavra não existe em alemão. O que há é Schoppen, que significa “copo pequeno”. Ou seja, o nome do tipo de copo que se usa para beber cerveja tirada do barril (em alemão, Fassbier, Bier im Fass ou ainda Schoppenbier) virou no Brasil o próprio nome da bebida – e com uma tremenda deformação gráfica!

Pessoa humana e outras pessoas

A leitora Ana Cristina Fischmann me faz a seguinte pergunta:

Caro Aldo, tenho ouvido em muitos lugares, inclusive em palestras, a expressão “pessoa humana” (por exemplo, a dignidade da pessoa humana etc.). Isso está certo?! Existe pessoa não humana? Me esclareça, por favor. Muito obrigada.

De fato, Ana, eu também por muito tempo estranhei essa expressão, pois para mim a palavra “pessoa” sempre se refere a um ser humano (exceto, talvez, as três pessoas da Santíssima Trindade – o Pai, o Filho e o Espírito Santo). No entanto, o Direito define pessoa como “toda entidade natural ou moral com capacidade para ser sujeito ativo ou passivo de direito, na ordem civil” (definição do dicionário Houaiss). Daí termos a pessoa física (o cidadão) e a pessoa jurídica (organização, entidade ou empresa). O problema é que, na prática, a única realidade que nossa legislação reconhece como entidade capaz de ser sujeito do direito acaba sendo o ser humano, individualmente ou em grupo. Nesse sentido, toda pessoa é humana, e portanto a expressão “pessoa humana” seria uma redundância.

Entretanto, sobretudo nos últimos tempos, uma nova perspectiva tem dado um significado mais amplo à palavra “pessoa”: trata-se da teoria (ou filosofia) dos seres sencientes. O que é ser senciente? Segundo Luciano Carlos Cunha, no site Pensata Animal (www.pensataanimal.net/glossario-dm/97-senciencia), senciência é a

[j]unção de dois conceitos: sensibilidade e consciência. Diz-se de organismos vivos que não apenas apresentam reações orgânicas ou físico-químicas aos processos que afetam o seu corpo (sensibilidade), mas além dessas reações, possuem um acompanhamento no sentido em que essas reações são percebidas como estados mentais positivos ou negativos. É portanto, um indício de que existe um eu que vivencia e experimenta as sensações. É o que diferencia indivíduos vivos de meras coisas vivas.

Dito de outra maneira, um ser senciente (do latim sentiens, do verbo sentire, “sentir”) não apenas está vivo, no sentido biológico de processar e transformar energia, mas é capaz de sentir dor e prazer e, mais ainda, de fugir da primeira e buscar o segundo. O aspecto mais visível para nós de que um animal tem sensibilidade e consciência é a reação à dor. Sobre esta, a filósofa Sônia T. Felipe afirma em Por uma questão de princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais (Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 113):

Para se poder dizer de um ser que este tem a capacidade de sofrimento, à qual se pode designar “capacidade para realizar a perda”, tal deve apresentar, de alguma maneira: 1) uma sensibilidade para os eventos que afetam o próprio organismo; 2) uma consciência dessa afecção, ou, em outras palavras, uma espécie de percepção das próprias experiências afetivas, a qual vem acrescida, na maior parte dos seres sensíveis, daquilo que chamamos de 3) memória, a qual torna o ser apto para reter ou manter o registro das informações de experiências passadas, e de 4) imaginação ou capacidade para ordenar as experiências sensíveis, as imagens da memória e a recordação consciente das mesmas de modo a prevenir-se contra situações de risco no presente. Quando tal capacidade se apresenta ainda mais elevada, o indivíduo pode, ainda, apresentar outra habilidade, qual seja, a de 5) ordenar atos em relação não apenas ao presente mas também ao futuro, demonstrando, desse modo, que tem 6) consciência temporal de si, o que caracteriza sua preferência por estar vivo e não pelas situações nas quais arrisca-se a morrer. Todas essas habilidades estão presentes em maior ou menor grau em todos os animais sensíveis. A diferença entre humanos e não humanos, no que diz respeito a tais experiências, é, pois, de grau, não de essência, tese apresentada por Darwin e incorporada por Singer em sua ética na defesa dos animais.

Segundo a Wikipédia, citando o filósofo Peter Singer, senciência é a “capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade”. E mais adiante afirma: “[n]ão se questiona que os humanos são seres sencientes […]. A questão que tem vindo a ser colocada é sobre se essa mesma capacidade de possuir percepções conscientes dos acontecimentos e da realidade em que estão envolvidos poderá ou não acontecer de igual forma com os outros animais”.

O fato é que, com o crescimento do movimento antiespecista nos últimos anos (especismo é a crença na superioridade da espécie humana sobre as outras espécies animais, da mesma forma que o racismo é a crença na superioridade de uma raça humana sobre outra), o Direito e a legislação aos poucos vão reconhecendo os animais como “pessoas” e não apenas como “coisas”. Exemplos disso são as recentes leis que proíbem experiências com animais na fabricação de cosméticos ou que criminalizam os maus-tratos e o abandono de animais.

Diante de tudo isso, a expressão “pessoa humana” passa a fazer sentido e deixa de ser um pleonasmo: existem, sim, pessoas não humanas, mesmo embora possa soar estranho para nós chamar um cachorro de pessoa. O que importa não é como os chamamos, mas como a justiça os considera.

Qual o sotaque mais bonito? E o mais feio?

Essa pergunta volta e meia surge em bate-papos e reacende uma velha discussão, que dá muito pano pra manga – e também dá margem a muitos preconceitos e discriminações. Há até tópicos em fóruns da internet com esse tema, e é curioso perceber que, neles, boa parte das pessoas tem uma posição chauvinista em relação ao assunto: o sotaque mais bonito é o da minha região, da minha cidade, do meu estado. E o sotaque mais feio é, em geral, o das pessoas mais pobres, das classes mais baixas, das regiões menos desenvolvidas.

Ora, não existem pronúncias feias ou bonitas – pelo menos, objetivamente falando. Beleza é questão de gosto. Afinal, quais seriam os critérios objetivos para determinar quem fala bonito ou feio?

Outra decorrência do chauvinismo linguístico é o sentimento que a maioria das pessoas tem de que elas não têm sotaque, são os outros que têm. Como se fosse possível falar uma língua desprovida de pronúncia! (Só se for a linguagem de sinais dos surdos-mudos.) Afinal, qualquer pessoa que fale um idioma utiliza uma pronúncia característica, que revela a sua região de origem, mas também a sua classe social, o seu nível de escolaridade e, em alguns casos, até a nacionalidade dos seus antepassados.

Na verdade, se quisermos pôr um pouco de objetividade nessa discussão, o que existe é uma pronúncia padrão do idioma, isto é, um modo de falar, típico dos atores e dos locutores de rádio, que se baseia na fala de uma determinada região do país (em geral, a mais influente econômica, política ou culturalmente), mas que é em grande medida artificial, já que resulta de treino profissional, e dificilmente se encontra nas ruas, mesmo na região da qual se origina.

Essa pronúncia padrão nasceu com a necessidade de veicular nos meios eletrônicos de massa (rádio e TV, principalmente) uma pronúncia que fosse bem aceita em todos os lugares. Por isso, a fala padrão costuma ser uma “média” das falas das pessoas cultas da maioria das regiões do país. Seu objetivo é ser o mais “neutra” possível (se é que isso é possível).

Quando se ensina um idioma estrangeiro, é a pronúncia padrão dessa língua que vai ser usada em sala de aula e no material didático audiovisual. É por isso que, quando se estuda francês, o que se ensina é a pronúncia de Paris e não a do Quebec ou do Senegal. Mesmo assim, boa parte dos parisienses não fala segundo esse padrão.

Aliás, algumas pessoas são mais “afetadas” do que outras, ou seja, têm uma pronúncia mais “carregada”, em que os traços característicos da sua localidade são mais acentuados. E, estranhamente, isso não tem a ver necessariamente com a cidade ou o bairro de origem do cidadão. Por exemplo, costuma-se pensar que aqueles paulistanos que falam cantado, com forte sotaque italiano (“cê tá mi inteindeindo?”), são naturais da Mooca ou do Bexiga. No entanto, há pessoas com esse sotaque em todas as regiões da cidade de São Paulo (e até no interior do estado), assim como nem todos os nascidos nesses bairros falam de maneira carregada.

Portanto, excluindo-se o chauvinismo puro, que só enaltece o que é da própria terra e execra o que é de fora, aquilo que as pessoas entendem como um falar bonito é um falar bem próximo do padrão. Do mesmo modo, quanto mais distante desse padrão, mais feia e esquisita é considerada a fala das pessoas. Em todas as regiões tem gente que fala segundo o padrão e gente que não. O mais é puro preconceito.

A metáfora do museu

O incêndio que destruiu o Museu Nacional no último domingo, 2 de setembro, foi, para repetir o já tão desgastado clichê, uma tragédia anunciada. E que teve dois infelizes precedentes: o incêndio no Museu da Língua Portuguesa em 2015 e o no Instituto Butantan em 2010. Nos três casos, perdas, a maior parte delas irreparáveis, para a história, a ciência e a cultura do nosso país.

Há muito tempo, a pesquisa científica, a preservação do patrimônio histórico e artístico e a de nossas riquezas biológicas vem sendo relegada a segundo, terceiro plano. Nos últimos anos, o orçamento destinado ao Museu Nacional decresceu, resultado de uma crise econômica provocada por incompetência dos governos e de uma corrupção desenfreada, aliada ainda a uma escolha política que prioriza privilégios em detrimento do essencial – saúde, educação, segurança, ciência, cultura.

Conforme explica a renomada neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel em vídeo disponível no YouTube, não existe no Brasil a profissão de cientista. Os cargos de direção dos setores responsáveis pela pesquisa, educação, cultura e patrimônio histórico do governo brasileiro – como, de resto, todos os cargos governamentais – são preenchidos por indicação política e não por critérios de mérito e competência técnica.

Sobre a inversão de valores na eleição das prioridades e a cultura do privilégio, leia-se matéria no site InfoMoney mostrando que a remuneração anual de um juiz ou o custo da troca dos carpetes do Senado poderiam suprir o orçamento do Museu Nacional.

Esse museu era um dos (poucos) motivos de orgulho do país. Com exatos 200 anos de história, o museu detinha 50 milhões de itens históricos, artísticos, arqueológicos, paleontológicos, mineralógicos e outros, incluindo a maior e melhor coleção de egiptologia da América Latina e o fóssil mais antigo de um ser humano habitante das Américas. Isso tudo, além do próprio valor histórico do prédio que o abrigava, lar de um rei e dois imperadores e local da assinatura da declaração de independência do Brasil, ironicamente num mesmo 2 de setembro.

Grande parte desse acervo foi amealhada por Dom Pedro II, homem progressista e entusiasta da ciência. Ao contrário da imagem retrógrada que a República procurou disseminar a respeito da Monarquia, nosso imperador era apaixonado por novidades tecnológicas e tratava de trazê-las ao Brasil tão logo surgiam. Basta dizer que o Brasil foi o segundo país do mundo a adotar o selo postal, três anos após sua invenção na Inglaterra. Ferrovias, cabo telefônico submarino, as primeiras instituições de ensino superior, ideias liberais e abolicionistas, defesa das liberdades e combate ao preconceito foram algumas das contribuições de seu reinado. Muito respeitado no Exterior, Pedro II era um estadista do tipo que nunca mais tivemos no Brasil. Que andava nas ruas travestido de cidadão comum para ouvir as queixas do povo. Que jamais roubou um centavo do erário. Naquela época, nosso país era proporcionalmente mais desenvolvido do que é hoje, não ficando muito atrás das grandes potências da época, como França, Grã-Bretanha e os emergentes Estados Unidos.

O Brasil é uma grande nação, com inúmeras riquezas naturais, um imenso território e um povo trabalhador e criativo, mas que não tem um Estado à sua altura. A nação brasileira é muito maior e melhor do que o Estado brasileiro; na verdade, é o Estado, tal qual está desenhado pela atual Constituição, o grande empecilho a que o Brasil se torne um país desenvolvido e uma potência mundial.

O incêndio no Museu Nacional não deixa de ser uma metáfora do que acontece atualmente no Rio de Janeiro e no Brasil. O descaso dos últimos governos com a coisa pública, com seu ápice no desgoverno Dilma-Temer, fez do Brasil uma nação em chamas, das quais só restará um rescaldo de cinzas. Em que nosso passado, nosso patrimônio, nossa identidade, carbonizados pelo fogo da incompetência e da corrupção, serão da mesma cor que nosso futuro.