Palavra do ano: democracia

Mais um ano se finda, e é chegada a hora de elegermos a palavra do ano, o vocábulo mais utilizado e repetido nos últimos doze meses ou o que melhor sintetiza o espírito desse período. E, a meu ver, esse vocábulo é democracia. Certas palavras só se tornam importantes quando aquilo que elas representam se torna escasso: ninguém fala o tempo todo sobre o ar que respiramos a não ser que ele comece a faltar. Assim foi com a democracia. Deveria ser um termo banal, designativo de algo onipresente como o ar, mas, se tanto falamos dela neste 2022, é porque tivemos o medo real de perdê-la. Mais do que isso, tivemos a consciência do quanto ela esteve e ainda está sob ameaça.

Em pleno século XXI, a democracia idealizada pelos filósofos iluministas do século XVIII ainda é exceção e não regra; a maior parte dos seres humanos vive sob regimes que nem de longe se parecem democráticos. A brutalidade do poder que oprime e se legitima pela violência e pelo terror ainda domina a maioria das sociedades e estados. Por ser tão rara, a democracia é tão preciosa, como uma flor frágil que precisa ser regada e adubada diariamente para que não feneça. E há muitos que querem matá-la, que preferem a tirania porque acreditam ingenuamente que levarão vantagem em estar ao lado dos tiranos, esquecendo-se de que tiranos não têm amigos, apenas se utilizam de seus aliados enquanto estes lhes servem; quando não mais, os descartam impiedosamente.

Democracia, palavra de origem grega formada de dêmos, “povo”, e krátos, “poder, governo”, é o governo do povo, para o povo e pelo povo. É bem verdade que em nenhum lugar do mundo é o povo quem governa. Mesmo na antiga Atenas, berço do termo e do sistema, exerciam o poder todos os cidadãos, que no caso não chegavam a um quinto da população da cidade-estado, já que mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não eram considerados cidadãos. Nas sociedades modernas, muito mais complexas que a pólis ateniense, a democracia só pode ser representativa ou, no máximo, participativa. Em ambos os casos, os cidadãos elegem representantes, que são quem vai legislar e apoiar — ou não — o governo eleito. E, como a democracia não raro degenera em demagogia, como já alertava Aristóteles, isso num tempo em que ainda nem havia marketing político, os “representantes do povo” não representam o povo e sim os lobbies que os elegeram: grandes corporações, grandes latifundiários, igrejas proselitistas e altamente capitalistas, poderosos sindicatos, até organizações criminosas. Isso quando não representam a si mesmos, isto é, defendem seus próprios interesses particulares, legislando em causa própria.

Apesar de tudo isso, a democracia é, como dizem, o pior dos regimes, com exceção de todos os demais. Estejamos, pois, vigilantes; como disse John Philpot Curran em 1790, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Feliz Ano Novo!

Sotaque de novela

Todo falante (com exceção, talvez, dos estudiosos da linguagem) tem uma visão idealizada da língua que fala, e das outras também. Desde crenças infundadas sobre a “pureza” deste ou daquele idioma até alegações, por vezes cercadas de uma aura cientificista, de que tal língua se presta melhor do que outras a determinados propósitos (comércio, poesia, filosofia, etc.). Essa mesma visão romântica — e por que não dizer chauvinista? — da língua é que leva o paulistano que pronuncia “inteindeindo” ou o carioca que diz “meijmo” a acharem que falam sem nenhum sotaque, que quem tem sotaque são os outros. E aí nascem os estereótipos linguísticos, sobejamente explorados pelos programas humorísticos da TV, nos quais o traço caricatural da fala regional, mais do que tolerado, é enfatizado, haja vista o efeito cômico que produz.

Mas o que dizer de telenovelas “sérias”, em que a imitação da pronúncia ou da sintaxe de determinada região (ou da fala de imigrantes estrangeiros) deveria causar no telespectador uma sensação de ambiência realista, como que a transportá-lo para o meio daquelas pessoas distantes, de fala igualmente tão distante da nossa? Via de regra, o que se vê em nossos folhetins televisivos é um arremedo, às vezes patético, do linguajar dos lugares e épocas retratados.

Atualmente, a Rede Globo (que, por sinal, passou a assinar-se novamente como TV Globo ou simplesmente Globo, conforme aparece na logomarca da empresa) exibe três telenovelas “regionais”: O Rei do Gado, Mar do Sertão e Travessia. Nas três, temos pronúncias caricatas, seja a do caipira (isto é, qualquer cidadão natural do meio rural, desde Rondônia até o Rio Grande do Sul), seja a do nordestino.

Nossa idealização “sulista” da fala deste último nos leva, em primeiro lugar, a achar que em todo o Nordeste se fala igual, portanto numa novela passada na Bahia e noutra em Pernambuco os atores falarão do mesmo jeito. Por sinal, um jeito no qual nenhum nordestino de verdade se reconhece. Nem o baiano nem o pernambucano.

Em segundo lugar, temos a vaga ideia de que no Nordeste o não vem sempre depois do verbo (“— Você quer? — Quero não.”) e mais substitui a preposição com (“Severino saiu mais Maria.”). Só falta explicar que o advérbio não não se pospõe simplesmente ao verbo. O que ocorre é o redobro do não, comum em todas as regiões do país (“Não quero, não”), seguido do apagamento do primeiro não (por preguiça dos baianos, dirão os maldosos). Portanto, é pouco provável ouvir um não posposto ao verbo que não esteja em posição final na oração. Uma frase como “hoje vou não à escola porque está chovendo” é bem improvável em qualquer lugar do Brasil, inclusive no Nordeste.

Em segundo lugar, mais de fato substitui com no sentido de companhia, mas não em outros sentidos. “Este ano a eleição coincide mais a Proclamação da República” ou “ele cortou o pão mais a faca” são construções impossíveis. A não ser nas novelas. (Em 2012, no remake de Gabriela, de Jorge Amado, ouviam-se frases como “Mundinho Falcão casa não mais Gerusa!”.)

E o que dizer do italiano macarrônico que volta e meia assalta nossa telinha, como no caso dos patriarcas das famílias Mezzenga e Berdinazzi de O Rei do Gado? Talvez preocupados em fazer com que um público mal escolarizado entenda o que os imigrantes da estória estão dizendo, o que se faz é pôr na boca dos atores um sotaque artificialmente “cantado”, acrescido de falsos cognatos, como, por exemplo, empregar allora no sentido de “agora” (allora significa “então” em italiano): “Io vó lá allora mesmo!”.

Finalmente, as novelas de época trazem janotas e donzelas do século XIX falando como surfistas: “eu vi ela saindo”, “eu queria muito que a gente ficasse juntos”, e por aí vai. Somem-se a isso cenários caríssimos reproduzindo o Rio de Janeiro dos tempos imperiais onde se leem placas com dizeres como farmácia e comércio, assim mesmo, com f no lugar do ph e m em vez de mm. Sem falar no acento agudo! (Parece que a televisão brasileira, ciosa do seu papel educativo e cultural, adota nas novelas de época a ortografia pós-Acordo Ortográfico de 2009.) Mais convincente do que isso só me lembro do Márcio Garcia fazendo papel de indiano na novela Caminho das Índias, de 2009.

O imbroxável e a parassíntese

Algum tempo atrás, publiquei neste espaço um artigo comentando o neologismo imbroxável, da lavra do nosso futuro ex-presidente (ufa!). Na ocasião, a polêmica era se essa palavra deveria ser grafada com x ou ch. Mas uma outra polêmica surgiu à época, a qual não tive então a oportunidade de abordar e o faço agora. Trata-se da questão de se o termo em questão é ou não uma formação por derivação parassintética.

Para quem não sabe, parassíntese é o processo de derivação em que ocorrem simultaneamente prefixação e sufixação, como em noiteanoitecer, por exemplo. No entanto, as gramáticas tradicionais costumam fazer uma distinção entre a prefixação e sufixação simultâneas e a parassíntese, afirmando que esta última só ocorre quando a palavra não existe só com o prefixo ou só com o sufixo. Nesse sentido, teríamos prefixação e sufixação simultâneas em infelizmente porque também temos infeliz e felizmente. Já em anoitecer, teríamos parassíntese porque não existe *anoite nem *noitecer. Essas gramáticas nos dão uma série de exemplos: abençoar, amanhecer, entardecer, envelhecer, envernizar, enrijecer, entristecer, emagrecer, engaiolar, avistar, resfriar, desalmado, ensurdecer, etc. Notem que a maioria dos exemplos é de verbos, e boa parte deles termina com o sufixo ‑ecer.

Essa definição é problemática. Em primeiro lugar, não existe prefixação e sufixação simultâneas a não ser na parassíntese. O exemplo de infelizmente não é de prefixação e sufixação simultâneas porque podemos perfeitamente pensar que infelizmente resulta de felizmente por prefixação ou de infeliz por sufixação. Logo, a prefixação e a sufixação não são simultâneas. Por outro lado, afirmar que anoitecer é parassíntese porque não existem *anoite ou *noitecer é arriscado. Essas palavras não existem, mas poderiam perfeitamente existir. Na língua, nada é impossível, portanto quem pode garantir que essas palavras não venham a ser criadas futuramente? A partir do adjetivo fresco criou-se refrescar por suposta parassíntese. Só que, tempos depois, surgiu por derivação regressiva o substantivo refresco. Se não soubermos quem surgiu primeiro, podemos perfeitamente considerar que refrescar deriva de refresco por sufixação e não de fresco por parassíntese.

Se o argumento em favor da parassíntese for o de que anoitecer surgiu primeiro que um suposto futuro *noitecer, então teremos que datar a criação de cada palavra na língua para saber quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

Talvez os gramáticos pensem na parassíntese como uma prefixação e sufixação simultâneas em que somente a prefixação ou somente a sufixação são impossíveis. Mas será que existem casos assim? Como eu disse, na língua nada é impossível.

No meu entender, só há duas saídas: ou se considera que parassíntese é a criação de uma palavra por prefixação e sufixação simultâneas quando não existem (ainda) os termos derivados só com prefixo ou só com sufixo (essa definição de parassíntese salvaria casos como o de anoitecer) ou então se considera que a parassíntese simplesmente não existe.

A questão levantada sobre o imbroxável foi que aí, contrariamente ao que eu havia afirmado naquele artigo, não haveria parassíntese porque é perfeitamente possível a existência do adjetivo *broxável, derivado do verbo efetivamente existente broxar. A questão é: *broxável é possível, mas não existe. Portanto, quando o ilustre futuro ex-presidente criou o vocábulo, juntou prefixo e sufixo simultaneamente ao verbo broxar. Se *broxável vier a ser criado, teremos uma situação idêntica à de refresco em face de refrescar.

Esse critério adotado pelas gramáticas da inexistência da palavra só com o prefixo ou só com o sufixo é, como se vê, sujeita a críticas. Afinal, *noitecer, *rijecer, *magrecer ou *gaiolar não existem, mas poderiam existir, uma vez que de amarelo se fez amarelecer, sem prefixo.

O gramático mais arguto poderia objetar que são casos diferentes, pois todo adjetivo iniciado pelo prefixo in‑ ou suas variantes im‑ e i‑ pressupõe um adjetivo primitivo sem o prefixo: infelizfeliz, impossívelpossível, imortalmortal. Logo, imbroxável pressupõe *broxável. Mas voltamos à questão: *broxável poderia existir, mas não existe, assim como *noitecer poderia existir, mas tampouco existe. Então por que temos parassíntese num caso e não no outro?

Se, toda vez que aplicássemos o sufixo ‑ecer a um adjetivo, fôssemos obrigados a aplicar também um prefixo, isso não seria parassíntese e sim circunfixação. Circunfixo, figura desconhecida da maioria dos gramáticos, é um tipo de afixo que se aglutina tanto antes quanto depois do radical. Por exemplo, em alemão o particípio passado dos verbos se faz com o circunfixo ge‑…‑t. Por exemplo, o particípio de tanzen, “dançar”, é getanzt, “dançado”, o de machen, “fazer”, é gemacht, “feito”, e assim por diante. Somente na circunfixação é que o prefixo e o sufixo são agregados simultânea e indissociavelmente ao radical. Por via de consequência, casos como o de anoitecer ou imbroxável não são circunfixações. Então, pelo critério gramatical, devemos concluir que a parassíntese não existe, pois ou temos circunfixação (que não é parassíntese) ou temos prefixação e sufixação simultâneas, mas que poderiam não ser simultâneas, já que a forma só com prefixo ou só com sufixo não existe, mas poderia muito bem existir — e pode vir a existir a qualquer momento, especialmente em Minas Gerais: “O cumpade gaiolô o passarim, depois sortô ele bunitim na mata”. (Brincadeirinha —mineiros, eu amo vocês!)

Resumo da ópera: imbroxável é, sim, uma parassíntese. Se um dia surgir *broxável, será uma derivação regressiva de imbroxável.

Um grande linguista falando sobre a linguagem

Hoje gostaria de citar as palavras de um dos linguistas mais importantes da história da ciência da linguagem, o dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965), sobre o seu (nosso) objeto de estudo: a língua. A citação foi extraída do prefácio da edição brasileira de seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem (São Paulo: Editora Perspectiva, 1975, p. 1-2). Apreciem!

Linguagem – a fala humana – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela o seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ele é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pais para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade.