Saudosismo ou bom senso?

Li outro dia o artigo de um cronista cujo nome não retive afirmando que os velhos são saudosistas não porque antigamente o mundo fosse melhor e sim porque eles eram melhores. Sem dúvida, qualquer um que tenha chegado à cinicamente chamada “melhor idade” sente saudade de sua juventude e do vigor físico de que então desfrutava. Além disso, todos tendemos a nos fixar em modas e costumes que adquirimos no início da vida, até porque mudar nossos hábitos e preferências (musicais, literárias, etc.) é custoso. Por fim, há a memória sentimental: canções antigas, filmes do tempo em que se era jovem trazem sempre boas lembranças.

Mas o ato de deplorar os tempos atuais pode ser mais do que mera rabugice da terceira idade; em muitos casos, pode ser sinal de sensatez. Vocês podem objetar dizendo que em todas as épocas os mais velhos eram saudosos do passado e avessos ao presente e também que em muitos aspectos a realidade atual é melhor que a pretérita. De fato, vivemos melhor hoje do que no tempo das cavernas ou na Idade Média, mas, dada a curta duração da nossa vida, ninguém obviamente tem lembrança de como era a vida em tempos pré-históricos ou medievais. Mas, neste momento em que escrevo, ainda há muitas pessoas que se recordam de como era a realidade 50, 60, 70 anos atrás. E por isso têm a dimensão de como a sociedade e a própria civilização vêm decaindo ao longo do tempo.

Em primeiro lugar, sentem o impacto da piora de sua qualidade de vida. Embora vivam mais, graças aos avanços da medicina, contemplam hoje problemas que não existiam em sua juventude: trânsito caótico, violência urbana, aumento da criminalidade, proliferação das favelas, epidemia das drogas, onipresença do crime organizado, embrutecimento das relações pessoais, império do individualismo, poluição, aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas, desmatamento, pandemias, banalização do sexo, alienação da juventude, discursos de ódio, amplificados pelas redes sociais, spams, telemarketing, disseminação de fake news, precarização do trabalho, dependência patológica dos smartphones, automatização e robotização das atividades humanas, desumanização do ser humano, consumismo desenfreado, entretenimento alienante, celebridades acéfalas, apologia do lixo cultural, pasteurização e mercantilização da arte…

Em segundo lugar, até algum tempo atrás as pessoas nasciam, viviam e morriam sem perceber grandes mudanças em seu modo de vida: o indivíduo escolhia uma profissão, arranjava um emprego, fazia carreira e lá se aposentava. Tinha filhos e os encaminhava da mesma maneira. Hoje, as mudanças sociais impulsionadas pela tecnologia são tão rápidas que um jovem entra na faculdade aos 18 anos e, quatro anos depois, quando se forma, pode ser que a profissão que estudou não mais exista.

Além disso, todos hoje vivemos estressados pelo excesso de informações, que se multiplicam mais rápido do que podemos assimilá-las e sem que tenhamos tempo de filtrar o que é relevante e o que é apenas ruído. O bombardeio de informações, na maioria das vezes inúteis, não deixa de ser mais uma forma de poluição.

É comum a sensação de que a civilização sempre melhora, tanto que a ideia de progresso já existia na Roma antiga (os romanos admiravam uma coisa chamada progressio, literalmente, “marcha adiante”), logo o presente é sempre melhor que o passado, e o futuro será melhor que o presente. O problema é que as sociedades passam pelos mesmos estágios que as pessoas: nascem, crescem, se desenvolvem, atingem seu auge e então começam a decair até entrar em colapso e desaparecer. Minha percepção é de que estamos vivendo justamente a decadência e talvez o colapso de nossa civilização. Se houve um significativo progresso material e cultural a partir do Renascimento, que atingiu seu apogeu entre os séculos XVIII e XX, hoje estamos vendo nosso castelo de cartas desmoronar. E essa queda parece estar sendo bem rápida. Portanto, os mais velhos não são saudosos apenas dos tempos em que eram melhores, mas de um tempo não muito distante em que o mundo era bem melhor. Se é verdade que em todas as épocas os idosos recordam o passado com nostalgia e desdenham do presente, hoje essa atitude tem mais uma razão de ser, tanto que já se veem jovens de 30, 35 anos saudosos do mundo de 15, 20 anos atrás. Recentemente, o Ministro do STF Alexandre de Moraes disse em relação à virada do século XX para o XXI, quando ainda não havia redes sociais, que “nós éramos felizes e não sabíamos”. E ele tem 57 anos, estando ainda longe de ser um idoso. Diante do Facebook e do TikTok, o finado Orkut chegava a ser romanticamente ingênuo. Frente aos viciantes smartphones de hoje em dia, os celulares dos anos 1990, que funcionavam apenas como telefones e nada mais, eram inofensivos. Em face dos aliciantes videogames da atualidade, cheios de violência e imagens e sons hipnóticos, os joguinhos eletrônicos dos anos 1980 eram tão inócuos quanto bolinhas de gude.

Desde fins do século XIX, vivemos constantes revoluções nos costumes provocadas por inovações tecnológicas. Primeiro, o telefone, depois a lâmpada elétrica, o automóvel, então o telégrafo, o fonógrafo, o cinema, o rádio, a televisão, o videocassete, o fax, o computador pessoal, o telefone celular, a internet, as redes sociais, a inteligência artificial, num processo cada vez mais acelerado e do qual temos cada vez menos controle.

Se antes sentir-se deslocado, mal adaptado e mesmo supérfluo era sintoma de velhice, hoje esse sintoma começa a ser sentido cada vez mais cedo, pois estamos caindo na obsolescência cada vez mais jovens. Logo, ter saudade do passado, mesmo de um passado recente, não é necessariamente indício de envelhecimento — pode ser sinal de bom senso.

Os loucos anos 60 e a geração Z

Há muito tempo se vem endeusando a geração de pessoas nascidas nos anos 40 e 50 do século passado e que, portanto, foram jovens ou adolescentes nos “loucos” anos 60. Essa geração, movida a sexo, drogas e rock’n’roll, ao amor livre, aos cabelos compridos, às calças jeans, aos tênis e camisetas, ao flower power, ao “paz e amor”, à cultura pop, à contracultura, à contestação do establishment e do sistema, à admiração pelo socialismo e por figuras como Che Guevara e que recomendava não confiar em ninguém com mais de 30 anos ao final envelheceu.

Sem dúvida, muitas conquistas foram feitas por esses jovens que, pela primeira vez, graças ao morticínio da Segunda Guerra Mundial, formaram a maioria da população. Desse modo, a indústria cultural e a indústria do consumismo, que eles tanto criticavam, logo passou a oferecer produtos dirigidos a eles. O rock e o pop abriram portas para uma renovação estética quando a música popular era pura estagnação (pense-se, por exemplo, na revolução provocada pelos Beatles, cujos frutos estamos colhendo até hoje). No entanto, essa revolução também abriu caminho para manifestações musicais de mau gosto e para muito lixo cultural, como o brega, filho da Jovem Guarda e neto do rock’n’roll. As canções de protesto de Bob Dylan e Joan Baez criaram as condições para que atualmente MCs patrocinados por criminosos cantem funks de crítica à polícia e de apologia às drogas. O rock dançante dos anos 50 deu lugar ao psicodélico dos anos 60, ao progressivo dos 70 para enfim desaguar na pauleira e no punk barulhento dos anos 80.

A calça jeans, usada para democratizar e “descaretizar” o vestuário, virou o uniforme que padroniza a todos, como ocorria na China comunista até a década de 1990. Hoje, quando os idosos também usam jeans e curtem rock, pois já nasceram na era pop, jovens e velhos estão novamente igualados, exatamente como não queriam os rebeldes de então.

A banalização do sexo (chamada à época de amor livre, que pouco ou nada tinha de amor), propiciada pelo advento da pílula anticoncepcional, permite hoje o fenômeno das periguetes, das mães solo (isto é, mães solteiras, muitas apenas adolescentes) e a objetificação das mulheres. Hoje, a garota que for a uma balada e não aceitar transar logo na mesma noite com o carinha que acabou de conhecer é simplesmente “fresca”. Como se a razão de ser das casas noturnas não fosse dançar, descontrair e tomar uns tragos, mas sim promover encontros sexuais sem compromisso (o que os ingleses chamam de one night stand).

O grande problema é que essa geração “empoderada” teve filhos e netos e os educou segundo os valores em que acreditava. O resultado estamos vendo hoje: jovens adultos mimados e ensimesmados, que não aceitam ser contrariados, que não se adaptam ao mercado de trabalho, que destilam sua rebeldia sem causa nas redes sociais sob a forma de discursos de ódio, que educam mal os seus filhos — ou nem educam, deixam essa tarefa aos professores e ao TikTok —, y otras cositas más.

Passada a empolgação com aquela geração e seus avanços estéticos e comportamentais, empolgação essa que durou algumas décadas, resta fazer um balanço crítico de seu legado neste século XXI de internet, redes sociais, celulares, nova ascensão do fascismo, “guerras quentes” (a Guerra Fria, que tanto temíamos, nunca degenerou para um conflito armado): será que o mundo que eles ajudaram a construir é um mundo realmente melhor? Muitos ex-hippies, hoje na casa dos 70, 80 anos, reconhecem que, em sua ingenuidade de acreditar que poderiam mudar o mundo, acabaram tragados pelo sistema que tanto combatiam, que sua ideologia se transformou em mais um artigo de consumo: camisetas com a estampa do Che produzidas por grandes confecções multinacionais e com mão de obra semiescrava na China ou na Indonésia, bandas de rock multimilionárias andando de limousine e fazendo exigências extravagantes para se apresentar em festivais, o sexo fácil descambando para a paternidade/maternidade irresponsável e para a violência de gênero e o feminicídio…

Eu peguei a “rabeira” desse movimento e por muitos anos fui um entusiasta desse admirável mundo novo criado pelos hippies, pelos Beatles e Rolling Stones, por James Dean, John Travolta, Madonna, Michael Jackson, pelo Maio de 1968, por Fidel Castro, por Jean-Paul Sartre e sua companheira, Simone de Beauvoir, mas confesso que hoje me sinto decepcionado. Se até os anos 50 não se falava em drogas e nos anos 60 droga era coisa de bicho-grilo e quem não usasse era careta, hoje vemos a devastação que as drogas causam na nossa sociedade: crime organizado mais poderoso que o Estado, infiltrado em todos os lugares (presídios, escolas, igrejas), uma geração de jovens perdida, alienada, sem perspectiva de futuro, vivendo um eterno presente como se não houvesse amanhã — e talvez não haja mesmo —, o planeta sendo destruído, e os poderosos de sempre lucrando com tudo isso. Até quando?

Qual a diferença entre “judeu”, “hebreu”, “israelense” e “israelita”?

A onda migratória que tem invadido a Europa nos últimos anos, formada em dado momento sobretudo por refugiados sírios e africanos, nos faz lembrar que o Brasil sempre foi um país aberto à imigração. De fato, muito do nosso progresso devemos a povos que para cá vieram e com o seu trabalho ajudaram a construir esta nação, dentre os quais se destacam portugueses, espanhóis, italianos, alemães, suíços, poloneses, japoneses, árabes e judeus.

Estes dois últimos povos não constituem propriamente nacionalidades e sim etnias, pois ninguém tem nacionalidade árabe (quem nasce na Arábia Saudita é de nacionalidade saudita e não árabe), mas o que chamamos de árabes eram, na verdade, imigrantes na sua maioria sírios ou libaneses, cuja língua nativa é o árabe. Portanto, árabes são todos os povos cujo idioma pátrio é o árabe. Árabe é, pois, um termo étnico e linguístico.

Bem mais difícil é definir o que seja judeu. Para complicar, muitos usam as palavras judeu, hebreu, israelita e mesmo israelense como sinônimos, o que dá margem a uma grande confusão — e a muitos preconceitos também, diga-se de passagem.

Comecemos então por definir o mais simples: israelense é o termo jurídico que define o cidadão nascido no Estado de Israel ou que possua a cidadania desse Estado, qualquer que seja a sua etnia ou religião. Tanto que há árabes muçulmanos nascidos em Israel e, portanto, detentores da cidadania israelense, o que lhes dá direito a utilizar os serviços públicos daquele Estado. Grande parte do conflito entre judeus e palestinos se dá exatamente por causa da disputa de ambos os povos pelo mesmo território.

israelita, hebreu e judeu são nomes que originalmente designavam um povo de língua semítica que habitava a região do Oriente Próximo chamada Judeia. Lá constituíram um reino chamado Israel (não confundir com o atual Estado de Israel), daí serem chamados de israelitas (isto é, filhos de Israel). Mas como os hebreus eram praticantes de uma religião monoteísta por eles mesmos criada e que veio a ser chamada de judaísmo, o termo judeu passou ao mesmo tempo a designar o povo hebreu e sua religião. Enquanto todos os praticantes do judaísmo eram hebreus e todos os hebreus praticavam essa religião (ou seja, as duas comunidades coincidiam totalmente), hebreu, judeu e israelita eram sinônimos perfeitos, tanto para denominar a etnia quanto a religião. (A única diferença, se podemos mencionar alguma, é que hebreu era o habitante de Hebron, judeu o habitante do reino de Judá, e israelita o habitante do reino de Israel. Na prática, todos os três um mesmo povo.)

As coisas começaram a se complicar quando ocorreu a Grande Diáspora judaica, que levou o povo hebreu a se espalhar por vários territórios ao redor do mundo e a assumir várias nacionalidades. Os descendentes dos habitantes da Judeia continuaram a professar o judaísmo e a se sentir pertencentes ao povo de Israel, daí continuarem a se autodenominar judeus. Mas, como uma pessoa pode converter-se ao judaísmo sem ser de etnia hebraica, assim como um descendente de hebreus emigrados pela Diáspora pode ter qualquer nacionalidade, além de poder converter-se a qualquer religião — ou mesmo renunciar a toda fé, como muitos judeus que se declaram ateus —, o termo judeu começa a comportar uma ambiguidade que não permite saber se estamos falando de raça, etnia, nacionalidade ou religião.

Para tornar mais claro o raciocínio, vou adotar termos alternativos para distinguir todos esses conceitos. Em primeiro lugar, convencionemos que o praticante da religião judaica, qualquer que seja sua origem étnica, seja chamado de judaísta. Reservaremos então o termo hebreu para designar os antigos habitantes de Hebron e da Judeia, que por volta do século XIII a.C. criaram o judaísmo e constituíram o reino de Israel.

Por conseguinte, chamaremos de hebreodescendentes aos descendentes dos antigos hebreus, quer tenham nascido em Israel ou em qualquer outro país, quer sejam judaístas ou praticantes de qualquer outra religião (ou de nenhuma). O resultado é que costumamos chamar de judeus tanto aos judaístas quanto aos hebreodescendentes. E é talvez aí que nasce o preconceito que persegue os judeus.

Vou fazer uma analogia para que o leitor entenda melhor. Sou brasileiro, neto de italianos, e venho de uma família católica, embora eu mesmo seja ateu. Os italianos, como se sabe, têm como pátria a Itália e são descendentes, assim como os franceses, espanhóis, portugueses, romenos, etc., dos antigos romanos, povo que viveu na Antiguidade num grande império chamado Roma.

Portanto, sou brasileiro, mas, por ser neto de italianos, tenho direito à cidadania italiana, o que quer dizer que posso morar na Itália e lá usufruir todos os serviços públicos a que os cidadãos italianos têm direito. No entanto, jamais digo que sou italiano, até porque isso seria uma impropriedade (não fui criado na Itália, não sou falante nativo do idioma italiano nem compartilho a maioria das características culturais do povo italiano; além disso, não me naturalizei italiano). Nesse sentido, sou 100% brasileiro e me orgulho disso apesar de todas as mazelas do nosso país. Além disso, poderia dizer de mim mesmo que sou um romanodescendente, já que meus ancestrais há 2 mil anos eram romanos, mas, sinceramente, não vejo muito sentido em proclamar isso. (Os romanodescendentes são o que se costuma chamar simplesmente de latinos, mas tampouco saio por aí dizendo que sou um latino.) Em suma, sou apenas um brasileiro.

No entanto, tenho um amigo que se diz judeu. Assim como eu, ele é nascido e criado no Brasil, portanto sua nacionalidade é oficialmente brasileira, embora ele também goze de cidadania israelense. Seus pais são igualmente brasileiros; seus avós vieram da Alemanha, Polônia e Ucrânia; seus bisavós, da Hungria, Ucrânia e Rússia; e se prosseguirmos nessa viagem ao passado de sua genealogia, encontraremos pessoas do Leste europeu pelo menos nas 20 últimas gerações, de modo que seu mais recente antepassado a viver na Palestina deve tê-lo feito por volta do século X ou XI da era cristã.

Esse meu amigo nasceu numa família em que todos praticam o judaísmo, mas ele, que cedo se interessou pelas ciências naturais, tornou-se cético, agnóstico e enfim ateu. Hoje é professor de física numa importante universidade. Ele não é judaísta nem hebreu (nem poderia, já que os hebreus, segundo a minha nomenclatura, bem entendido, não existem mais), é apenas um hebreodescendente bem distante. Entretanto, ele se diz judeu e assim a ele se referem os outros.

Eu e ele temos situações análogas. Somos ambos nascidos e criados no Brasil, filhos de brasileiros, descendentes de europeus até onde a árvore genealógica de nossas famílias alcança, além de não praticarmos nenhuma religião. No entanto, ele se considera pertencente a um povo que não é o brasileiro, nem o alemão nem o polonês nem o ucraniano: ele é integrante do povo judeu.

O que vocês achariam se eu eventualmente dissesse que faço parte do povo católico? Ou do povo romano? Algumas seitas cristãs até costumam denominar seus fiéis de “povo de Deus”, mas a palavra povo aí não tem qualquer conotação étnica como tem no caso dos judeus; além disso, quem me conhece e sabe do meu anticlericalismo, daria risada do meu suposto catolicismo.

Mais estranho ainda seria se eu reivindicasse para mim a etnia romana, já que sou descendente do “povo de Roma”, que um dia também se dispersou, se miscigenou e virou italiano, francês, português, etc. Como tenho senso de ridículo, digo que sou brasileiro e, se quiserem saber mais, explico que sou neto de italianos. Ponto final.

A questão é que nós, descendentes de italianos, em geral não nos consideramos um povo à parte dentro de outro povo: não somos uma nação dentro do Brasil, como são os povos indígenas. Tampouco os italodescendentes espalhados pelo mundo agem como se fossem uma entidade transnacional, uma nação sem território que está em todos os territórios. (A bem da verdade, uns poucos, bem poucos mesmo, até fazem isso.)

É verdade que por séculos Israel não teve um território, pois, após a destruição do templo de Jerusalém e a Diáspora, e até a fundação do moderno Estado de Israel em 1948, o único traço em comum entre os hebreodescendentes foi a religião judaica, o que explica em parte que eles tenham feito do judaísmo a sua pátria. Mas não nos esqueçamos de que a Itália também só passou a existir como Estado em 1861: antes disso era, no dizer de Metternich, “uma mera expressão geográfica”.

Outro argumento que se pode lançar é que, durante séculos, independentemente de sua origem geográfica, os judeus foram discriminados no Ocidente pela Igreja Católica, o que fez com que todos eles fossem vistos como um único povo e, ao mesmo tempo, um povo distinto dos europeus. Mas é preciso lembrar que, durante a Idade Média, em que essa perseguição foi mais sistemática, não só os judeus eram vistos como uma nação: a própria cristandade constituía uma nação que transcendia territórios e Estados. Portanto, se em tempos medievais havia apenas duas nacionalidades — judeus e cristãos —, hoje as coisas não são mais assim: os cristãos deixaram há muito de ser uma nação transestatal; hoje a nacionalidade política se sobrepõe amplamente à identidade religiosa. O mesmo poderia valer em relação aos judeus.

O fato é que o apego de meu amigo às suas longínquas origens hebreias, a ponto de ele se identificar com uma nação que tecnicamente não existe, é o que atrai para si uma certa suspeita. Como ele mesmo me relatou, já foi algumas vezes vítima de preconceito racial por ser judeu. Mesmo veladamente, alguns colegas deixam transparecer alguma desconfiança, pois o veem como um “agente infiltrado”. Certamente não é o caso do meu amigo, mas muitos judeus tomam atitudes que contribuem para essa imagem de “jogo duplo”: ricos empresários judeus nascidos e criados no Brasil que enviam dinheiro para ajudar Israel na guerra contra os palestinos; judeus nascidos e criados no Brasil que pedem em testamento para ser enterrados em Israel; muitos que se organizam em comunidades e clubes em que a entrada de não judeus é vista com muita estranheza, e assim por diante.

Neste momento em que se afigura uma guerra entre Israel e o Hamas que tende a ser longa e sangrenta, alguns fatos me chamam a atenção. Outro dia, uma “brasileira” (aparentemente carioca, a julgar pelo sotaque) que vive em Israel e tem sobrenome eslavo declarou na televisão que vai alistar-se no exército israelense e combater ao lado do namorado, que é soldado e já está na linha de frente da batalha. Ela tranquiliza sua família, que vive no Brasil, e afirma que é preciso lutar por Israel, segundo ela, o único lugar em que os judeus podem viver. A julgar por sua fala, sua pátria é Israel e não o Brasil, e ela não vê nosso país como um lugar onde judeus possam viver, embora ela própria tenha nascido e por muito tempo vivido no Brasil, e sua família ainda esteja aqui e em segurança.

Outra jovem nascida e criada no Brasil, desta vez com sotaque paulista, no aeroporto já de partida para Israel, declarou à reportagem que está indo lutar na guerra para defender a sua pátria.

De modo geral, a tendência de os judeus se considerarem uma nação à parte dentro de qualquer outra nação que habitem, somada ao fato de não se misturarem com facilidade a outras etnias (casamentos entre judeus e não judeus são pouco frequentes e nem sempre bem vistos), faz com que, apesar de serem vítimas históricas do racismo, sejam muitas vezes injustamente tachados de racistas.

Em resumo, brasileiros filhos de brasileiros, netos de alemães, bisnetos de poloneses e tataranetos de ucranianos são muitas vezes vistos — especialmente pelos menos informados — como se fossem estrangeiros, não importa quão patrioticamente brasileiros eles sejam. Essa ambiguidade no significado da palavra judeu tem, a meu ver, grande peso nessa visão preconceituosa que cerca os judeus.

Enfim, judeus ou israelitas eram em primeiro lugar os hebreus da Antiguidade. Da Idade Média em diante, passaram a ser os judaístas e os hebreodescendentes, sendo que, até certo ponto, todos os judaístas eram hebreodescendentes e vice-versa. Hoje há judaístas que não são hebreodescendentes (como a cantora Aracy de Almeida no fim da vida), há hebreodescendentes que não são judaístas (como Bob Dylan, que se tornou cristão, ou Woody Allen, que é ateu), e nenhum deles é israelense, no sentido de “nascido em Israel”, embora possam usufruir essa cidadania. E, numa grosseira simplificação de linguagem, chamamos a todos eles de judeus.

Enquanto isso, eu, um legítimo romanodescendente, membro da nação cristã (embora ateu), sou apenas um brasileiro. E já acho bastante.

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No quadro comparativo abaixo, procuro fazer uma grosseira analogia entre a comunidade judaica e a latina ou romanodescendente.

Quadro comparativo judeus x romanos e seus descendentes

Hebron, Judeia, Judá, reino de IsraelImpério Romano, Itália romana
Estado de Israel (fundado em 1948)República Italiana (fundada em 1861)
judeus, hebreusromanos
hebreodescendenteslatinos
judaístascatólicos

A História como ciência

Há uma frase muito conhecida e propalada tanto no meio político quanto no acadêmico dizendo que a História é sempre contada pelos vencedores. Certo, fico imaginando como seria a história da Segunda Guerra Mundial contada pelos nazistas. Mas, de fato, essa frase tem um certo fundamento porque, durante muito tempo, a História não passou de uma narrativa feita sob encomenda dos poderosos para louvar seus feitos. As crônicas medievais, por exemplo, eram narrativas redigidas pelos chamados cronistas, escritores a serviço do rei incumbidos de enaltecer os feitos heroicos do soberano, às vezes até exagerando um pouco nas tintas — e omitindo seus fracassos e defeitos morais, é claro.

Atualmente, em tempos de politicamente correto e lugar de fala, tornou-se comum reivindicar que a História também seja contada do ponto de vista dos derrotados, isto é, das minorias oprimidas, como mulheres, negros, índios, homossexuais, etc. Até aí nenhum problema, parece uma reivindicação mais do que justa. Mas o ponto que quero destacar é: desde pelo menos o século XIX, a História se tornou uma ciência, com objeto bem definido e método próprio (o chamado método histórico), que consiste em procurar reconstituir o passado de uma sociedade da forma mais fidedigna possível com base no maior número de documentos a que se possa ter acesso. Portanto, se a História é de fato uma ciência e, como tal, fiel à realidade dos fatos e a seu objeto, então não há uma História contada pelos vencedores e outra contada pelos vencidos, há apenas História.

Afinal, se um suposto pesquisador homem, branco e heterossexual omitir em sua pesquisa todos os dados positivos em relação às mulheres, aos não brancos e aos gays, ressaltando apenas os pontos negativos desses grupos, esse indivíduo não é um historiador, é um mistificador, um embusteiro — numa palavra, um picareta.

Tenho notícia de alguns livros escolares de História, por sinal aprovados pelo Ministério da Educação, que retratam certos períodos históricos de forma maniqueísta, misturando fatos com juízos de natureza pessoal e ideológica e tomando partido por um lado ou por outro, portanto contando a História do ponto de vista ou do vitorioso ou do derrotado. Isso não é História, no sentido científico do termo, é doutrinação dos estudantes. Um historiador sério deve narrar os fatos tal qual eles ocorreram ou, pelo menos, tal qual se pode inferir que tenham ocorrido a partir dos registros de que dispomos. Como em qualquer ciência, onde é preciso manter a objetividade e a imparcialidade, não cabe ao historiador eleger mocinhos e vilões ou enaltecer os feitos de determinados governos e denegrir a imagem de outros segundo sua preferência político-ideológica. Não lhe cabe fazer juízos de valor, assim como não lhe cabe ressaltar os aspectos louváveis de determinada figura histórica e omitir seu lado obscuro ou vice-versa. Enfim, não cabe ao historiador que se preze e que faça História com perspectiva científica tomar o partido nem dos vencedores nem dos vencidos. Até porque, se a História é de fato uma prática científica, então não pode valer outra frase muito popular que é “a verdade não existe, o que existe são versões”.

Index Verborum Prohibitorum Parte 2 — A Missão

DISCLAIMER: Este texto contém ironia.

Eu não disse que voltava? Pois é, voltei! Dando prosseguimento à minha lista de palavras e expressões que devem ser banidas da língua portuguesa ou reformuladas por serem politicamente incorretas e ofensivas a grupos sociais minoritários, trago hoje as seguintes:

• “ameríndios”: se não há índios e sim indígenas ou povos originários, por coerência os ameríndios terão de ser agora chamados de “amerindígenas” ou “ameroriginários”;
• “bolo nega maluca” e “Samba do Crioulo Doido”: diante do desrespeito tanto a uma etnia quanto a uma condição de saúde, o confeito deve passar agora a ser denominado “bolo mulher afrodescendente com distúrbios cognitivos” e o famoso samba composto pelo cronista e humorista Estanislau Ponte Preta deve ser rebatizado para “Samba do Afrodescendente com Problemas Psiquiátricos”;
• “rainha da cocada preta”: com base nos exemplos anteriores, deixo aos leitores a tarefa de deduzir a nova versão dessa expressão racista;
• “pneu careca”: em respeito aos calvos, será chamado de “pneu com deficiência capilar”;
• “olho gordo”: para evitar gordofobia, o chamado mau-olhado passaria agora a ser conhecido como “olho portador de obesidade” (ou “de sobrepeso”, se preferirem).
• “Terça-Feira Gorda”: pelo mesmo motivo da expressão anterior, passa a ser agora “Terça-Feira Plus Size”;
• “Branca de Neve e os Sete Anões”: já que anão passou a ser termo depreciativo, teremos “Branca de Neve e as Sete Pessoas com Nanismo”;
• “matar as bichas”: além de homofóbica, essa expressão incita à violência contra os homossexuais; portanto, não pode sequer ser substituída, deve ser banida mesmo;
• “gesto nobre”: será que só os portadores de título de nobreza é que têm bom coração? Isso é uma discriminação contra quem não tem sangue azul. Portanto, a expressão agora será “gesto plebeu”.

Também alguns nomes próprios terão de ser alterados, em alguns casos até em respeito póstumo aos seus portadores. É o caso do escultor mineiro Aleijadinho, que a partir de agora figurará nos livros de história como Pessoinha com Deficiência ou então Portadorzinho de Necessidades Especiais. Do mesmo modo, o Negrinho do Pastoreio passará obviamente a ser o Afrodescendentezinho do Pastoreio. Igualmente, o Rio Negro, no estado do Amazonas, será agora o Rio Afrodescendente (essa mudança incluiria o nome artístico daquele famoso cantor sertanejo que faz dupla com o Solimões). O Rio das Velhas, em Minas Gerais, se tornará o Rio das Senhoras Idosas ou então o Rio das Senhoras da Terceira Idade. Já a cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas, terá seu nome mudado para Palmeira dos Povos Originários. Finalmente, o Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, terá de receber outra denominação para que não pensem que o nome é uma alusão racista aos moradores do referido morro.

Aproveitando a oportunidade, também sugiro as seguintes alterações em expressões correntemente usadas no dia a dia, as quais ninguém até agora percebeu que são sexistas:

• “o pai ou responsável pela criança” → “o pai, a mãe (ou “e pãe”, no caso de pessoa não binária) ou responsável pela criança”;
• “o dinheiro do contribuinte” → “o dinheiro do contribuinte e da contribuinta”;
• “Dia dos Namorados” → “Dia dos Namorados, Namoradas e Namorades”;
• “título de eleitor” → “título de eleitor, eleitora e eleitore”.

Só assim teremos um Brasil mais justo e inclusivo.

Sobre ideologia e pragmatismo

Pessoas que professam ideologias, sejam elas políticas, religiosas ou mesmo futebolísticas, tendem a achar que todos os seres humanos são igualmente ideológicos. Por sinal, uma frase frequentemente repetida pelos ideólogos de esquerda é “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”. Antes de mais nada, é preciso definir do que estou falando, já que essa palavra tem vários significados. Refiro-me à ideologia como crença numa doutrina, isto é, num conjunto de ideias e propostas que, para quem nelas crê, têm valor de verdade, portanto não são sentidas como crenças e sim como verdades absolutas. Pessoas assim não conseguem compreender a diferença entre crer e saber: para elas, tudo é objeto de crença, inclusive as afirmações embasadas em evidências concretas; logo, a própria ciência não passa de uma doutrina. Essas pessoas equiparam a eficácia de vacinas ou a esfericidade da Terra à virgindade de Maria ou a ressurreição de Jesus. E, obviamente, a ideologia em que acreditam é a verdadeira e as demais, falsas. Como, para elas, tudo é ideologia, elas não conseguem conceber uma postura filosófica e pessoal chamada pragmatismo, misto de ceticismo e bom senso, que consiste em não aceitar passivamente qualquer afirmação como verdade inquestionável e sempre preferir modelos de conduta e propostas de solução de problemas que já se tenham provado eficazes. Mas, sim, há pessoas pragmáticas, que não se deixam seduzir pelo canto da sereia de certas doutrinas e olham criticamente toda e qualquer afirmação ou proposta de solução. É verdade que são bem raras, até entre os chamados “intelectuais”, muitos deles também profundamente contaminados por ideologias, especialmente as políticas. E o mais irônico é que muitos desses intelectuais dizem ter uma visão “crítica” da realidade.

De fato, é bem difícil livrar-se das ideologias, primeiro porque, como disse acima, a maioria das pessoas não tem consciência de que é ideológica, mas pensa que sua crença é a própria Verdade; segundo porque somos doutrinados desde a infância por pais, professores, padres, pastores, lideranças políticas ou artísticas, influenciadores digitais, a mídia, etc.; terceiro porque, como humanos mortais que somos, padecemos de uma terrível fraqueza emocional que nos leva a nos agarrarmos desesperadamente a nossas próprias certezas, afinal a crítica pressupõe a dúvida, e temos aversão ao desconhecido, sobretudo ao desconhecido supremo que é a morte. Por isso, precisamos acreditar em divindades que nos protegem e salvam se formos devotados a elas, em vida após a morte e também em políticos salvadores da pátria, em sistemas políticos e econômicos que proporcionarão a felicidade e a paz eternas à humanidade, e assim por diante.

Só que as ideologias não são ideias isoladas, são conjuntos estruturados e coerentes de ideias e atitudes que são vendidos como um pacote completo. Se sou de direita, então tenho de ser contra o aborto, o casamento gay (e contra os gays de modo geral), as vacinas, a Teoria da Evolução e a favor da pena de morte, do armamento da população, do Estado mínimo, da privatização total e irrestrita de todos os serviços públicos, da inviolabilidade da propriedade privada, do garimpo na Amazônia, etc.

Já, se sou de esquerda, tenho de ser a favor do casamento gay, do ensino da ideologia de gênero nas escolas, da linguagem neutra de gênero, da liberação da maconha e das outras drogas, do controle estatal dos meios de comunicação, de um Estado forte e intervencionista, da estatização de todos os serviços públicos, do banimento dos dicionários de palavras que sejam consideradas politicamente incorretas, e por aí vai.

Quando se trata de ideologia, não há meio termo: ou se compra o pacote completo ou se é um traidor da causa, um alienado, um inocente útil, massa de manobra, um “isentão”, ou seja, alguém que, por ação ou omissão, serve à ideologia oposta. Não à toa, para os esquerdistas os isentões estão a serviço da direita, e vice-versa.

Só que a realidade é mais complexa do que sonha nossa vã filosofia — ou ideologia. Não há soluções mágicas para os problemas humanos, até porque somos criadores compulsivos de problemas. Nem o cristianismo, nem o islamismo, nem o marxismo, nem o neoliberalismo, nem a filosofia new age vão nos livrar de nós mesmos, embora os adeptos dessas doutrinas achem que sim.

Diante do cardápio de “soluções” oferecidas por essas ideologias, posso perfeitamente escolher aquelas que funcionam na prática, sejam elas de esquerda ou de direita, de modo frio e racional, portanto sem me deixar levar por paixões ou idiossincrasias. Posso concordar com a esquerda em certos pontos e discordar em outros, assim como posso fazer o mesmo com a direita. Mas, para que isso funcionasse na prática, seria preciso que todos fossem igualmente pragmáticos, o que está muito longe de acontecer.

Por exemplo, uma discussão como a que ocorre sobre a legalização do aborto em todos os casos e não só nos atualmente previstos na lei brasileira deveria dar-se com base em dados objetivos e não em dogmas religiosos. Primeiro, um embrião é um ser vivo e, mais, um ser humano ou só um projeto, um amontoado de células? Um embrião ou um feto pode ser considerado juridicamente um sujeito dotado de direitos? Ele tem consciência, é um ser senciente, ele sente dor, ele sabe que está vivo? A possível vida desse embrião vale mais do que a de um jovem negro morto pela polícia? Vale mais que a de um cão ou gato morto por maus tratos? Vale mais que a de uma galinha morta em ritual religioso? Vale mais que a dos insetos nos quais pisamos no dia a dia? E, se vale, com base em qual ética? Essa ética é universal? Tem amparo em evidências fáticas? Até qual fase da gestação o aborto deveria ser permitido, caso o fosse? As mulheres deveriam ser consultadas sobre algo que diz respeito a seus próprios corpos?

Indo além, a liberação do aborto melhoraria ou pioraria as condições de saúde pública? Aumentaria ou reduziria a criminalidade? Aumentaria ou diminuiria a mortalidade de mulheres jovens? Contribuiria ou não para a paternidade e maternidade responsáveis, para o planejamento familiar, para a erradicação da pobreza e da desigualdade social, para a superpopulação mundial? Como é a vida em países em que o aborto é legalizado e em países em que não é: melhor ou pior do que aqui?

Evidentemente, não tenho resposta a todas essas questões, embora saiba que especialistas no tema as têm para a maioria delas. Só que, nesse debate, o que prevalece não é o parecer técnico de quem estuda há décadas o problema, é a pressão de grupos ideológicos, tanto de um lado quanto de outro, os quais defendem suas posições apenas porque acreditam cegamente nelas — e acreditam porque foram condicionados desde muito cedo a acreditar. A ideologia é uma máscara que, de tanto ser usada, se cola de tal modo ao rosto de seu usuário que ele acaba por confundi-la com sua própria face.

Citei como exemplo a questão do aborto, mas poderia tratar igualmente da pena de morte, da redução da maioridade penal, do controle de natalidade, da descriminalização das drogas, das privatizações, da taxa de juros, do novo arcabouço fiscal, da linguagem neutra de gênero ou qualquer outra. Como sempre digo, teríamos o melhor dos mundos se todas as pessoas fossem racionais, bem educadas, bem informadas, emocionalmente equilibradas, bem intencionadas e, mais, altruístas, generosas, empáticas, simpáticas e sobretudo pragmáticas em vez de ideológicas, mas isso é utopia demais para a nossa comezinha humanidade, não é? Por isso, pragmatismo é mercadoria escassa no mercado. Abundantes mesmo são as crenças cegas e fanáticas e seus decorrentes atos de violência contra os defensores de outras ideologias ou do pragmatismo, atos esses sempre justificáveis por quem os pratica, já que estes são os detentores e conhecedores únicos da Verdade absoluta.

O ser humano é realmente um animal racional?

Dando continuidade à minha “filosofice” do artigo anterior, publico agora outro artigo, redigido muito tempo antes daquele, mas que de certa forma funciona como complemento e continuação da minha reflexão sobre a inteligência, a racionalidade e a sabedoria (ou não) da humanidade. Então vamos lá.

Por que o BBB faz tanto sucesso? Por que música brega é tão popular? Por que tanta gente aposta em loterias? Por que tanta gente acredita no sobrenatural? Por que políticos corruptos são (re)eleitos?

Cientistas sociais se debruçam sobre essas questões e produzem teses e mais teses acadêmicas quando a resposta é simples: o bom gosto é irmão do bom senso. E a maioria das pessoas não tem nem bom gosto nem bom senso. Aliás, o bom gosto é a manifestação estética do bom senso. E o bom senso deriva da racionalidade. Só que, embora a racionalidade seja o mais humano dos atributos (“o homem é um ser racional”), ela é um atributo “recessivo”, isto é, a maior parte das pessoas não tem o gene da racionalidade como dominante. É por isso que pessoas guiadas pela razão são minoria no planeta.

A razão foi importante na evolução da espécie humana, mas o fator preponderante da nossa evolução foi de natureza não racional. A superstição e o julgamento pela emoção parecem ter contribuído mais para a sobrevivência dos nossos antepassados do que a razão. Racionalidade é bom na hora de planejar uma caçada, mas isso um dos membros da tribo — o mais racional — pode planejar sozinho. Já a sobrevivência individual dependeu mais de decisões rápidas e não racionais.

Embora se desenvolva com o estudo, a racionalidade só aparece como traço dominante numa pequena parcela da população. É por isso que a religião e a superstição são mais populares que a ciência, e o mau gosto supera o bom senso estético.

A cicuta nossa de cada dia

Corrija um sábio e o tornará ainda mais sábio; corrija um idiota e o tornará seu inimigo.
(Provérbio de origem desconhecida)

Como todos sabem, Sócrates foi um grande sábio grego da Antiguidade. Por sinal, é considerado o pai da filosofia ocidental. Não que não houvesse filósofos antes dele, mas estes ficaram conhecidos como pré-socráticos justamente porque Sócrates representou um divisor de águas: a filosofia passou a ser dividida entre antes e depois dele. Enquanto seus antecessores se preocuparam em estudar a natureza — e por isso poderiam ser comparados aos modernos cientistas —, Sócrates se ocupou de estudar o homem e de compreender a natureza humana. Daí o impacto de suas ideias até hoje.

Mas Sócrates é lembrado também por ter sido mais uma das tantas vítimas da ignorância sobre o conhecimento e a sensatez, assim como o foram Jesus, Giordano Bruno, Galileu e outros.

Sócrates desenvolveu um método próprio e peculiar de filosofar e de ensinar seus discípulos, o chamado método socrático, ou maiêutica, que, à maneira de uma parteira, que traz o bebê ao mundo retirando-o de dentro do ventre da mãe, procura extrair das pessoas o conhecimento que já está dentro delas, mas do qual elas ainda não têm consciência. Para isso, Sócrates basicamente fazia perguntas instigantes, que levavam o interrogado a buscar a resposta dentro de si e, assim, fazer uma descoberta.

A questão é que as perguntas de Sócrates eram tão instigantes quanto inconvenientes, pois não raro levavam as pessoas a deparar-se com verdades incômodas, que elas se recusavam a aceitar, por mais evidentes que fossem, porque contrariavam crenças muito arraigadas dentro delas, tão arraigadas que, para elas, se confundiam com a própria verdade.

O incômodo provocado na sociedade ateniense por Sócrates perturbou os poderosos locais, dentre os quais os políticos, cuja manipulação da opinião pública o filósofo tornava evidente, e os sofistas, filósofos profissionais que ganhavam dinheiro dando aulas em que também manipulavam a verdade por meio de habilidosos jogos de palavras. Em razão do mal-estar que causava, Sócrates acabou sendo condenado por não acreditar nos deuses gregos e por corromper a juventude com suas ideias. Em relação à primeira acusação, não se sabe se Sócrates realmente pregava alguma espécie de ateísmo, mas a crença religiosa prevaleceu sobre qualquer argumento racional que a questionasse, como costuma acontecer ainda hoje. Quanto a corromper os jovens, a sociedade de então viu como corrupção a abertura da mente desses jovens a novas ideias, vistas como perigosas ao status quo, como também ocorre até hoje.

Condenado à morte, Sócrates foi obrigado a ingerir um veneno chamado cicuta, e o fez com serenidade, segundo relatam seus discípulos, que a tudo assistiram. Na realidade, ele pagou com a própria vida por exercer o livre pensamento e por tentar ensinar seus contemporâneos a pensar com a própria cabeça em vez de aceitar passivamente os dogmas que se lhes impunham.

A questão é que, tanto antes dele quanto nos 2.400 anos seguintes, isto é, até os dias de hoje, o pensamento livre, o raciocínio lógico, a busca da verdade por meio da razão e da observação dos fatos, a recusa ao argumento de autoridade e ao dogmatismo incomodam. Seja porque ameaçam o poder de alguns, seja porque abalam aquilo que o ser humano mais preza e em que mais se agarra: suas próprias crenças.

Dizem que o homem é um ser racional. Tanto que a biologia nos intitulou Homo sapiens sapiens, “homem duplamente sábio”. Mas a verdade é que apenas uns poucos homens são ou foram realmente racionais no sentido de pautar sua vida e seu pensamento pela razão e pelo bom senso e não pelos instintos, pelas emoções (inclusive as mais primitivas) e por crenças irracionais e sem fundamento. Todo o progresso civilizatório que desfrutamos hoje se deve a alguns gênios, muitos deles incompreendidos, como o próprio Sócrates, Aristóteles, Leonardo, Galileu, Newton, Voltaire, Darwin, Nietzsche, Freud, Einstein… Esses personagens questionaram a realidade, recusaram aquilo em que se acreditava e foram mais longe, desbravando o desconhecido e revelando aspectos da nossa existência que não conhecíamos — na verdade, a maioria da humanidade ainda não conhece. Aliás, intelectual e moralmente, a maioria da humanidade ainda se encontra no mesmo estado em que estava no tempo das cavernas. Basta olhar para o nosso mundo e constatar que, apesar de todo o nosso progresso material e tecnológico, a maior parte de nós ainda vive na miséria, na fome, dominada por tiranos, travando guerras tão sangrentas quanto inúteis, cultuando deuses que não existem, destruindo a natureza que é nossa própria e única casa, julgando os semelhantes por defeitos que nós próprios temos, odiando-nos uns aos outros por meras questões ideológicas, matando e morrendo por dinheiro, consumindo entretenimento de péssima qualidade, perdendo tempo com futilidades e deixando de nos ocupar com o que é realmente importante, mas, sobretudo, fazendo mal aos outros e a nós mesmos.

Ainda hoje, embora todo o nosso progresso se deva ao conhecimento científico e filosófico, a ciência e a filosofia ainda são desconhecidas ou, pior, desacreditadas pela maior parte das pessoas. Ainda há terraplanistas, antivacinistas e criacionistas. Em contrapartida, crenças metafísicas e ideologias ainda dão o tom. Ainda hoje, quando alguém tenta, mesmo que com argumentos lógicos e evidências objetivas, retirar o véu que encobre a visão dos ignorantes e mostrar-lhes a realidade, estes se revoltam não contra quem os enganou o tempo todo e sim contra quem os livrou do escuro e lhes mostrou a luz. É que a escuridão é muito cômoda, ela nos impede de ver coisas que, no fundo, não queremos ver, como, por exemplo, nossa própria mortalidade e nossa fragilidade e pequenez diante do Universo. A maioria de nós, vendo que o rei está nu, prefere acreditar que ele está vestido com um manto que só os sábios podem ver e, se um abelhudo grita no meio da multidão que o rei está despido, em vez de se dar conta da real nudez do rei, trata logo de linchar o abelhudo.

Viver entre as pessoas comuns é uma tarefa árdua especialmente para quem enxerga um pouco mais longe, para quem tem algum senso crítico, para quem costuma pensar antes de agir ou de falar. O sábio só pode conversar sobre coisas sábias com outro sábio. E os sábios são tão raros! Se o indivíduo sensato tentar discutir qualquer questão mais profunda com o cidadão comum, mediano, provavelmente será incompreendido e fará um inimigo. Quando duas pessoas racionais discutem, mesmo que tenham ideias opostas, elas se dispõem a ouvir e ponderar os argumentos do outro e mesmo a rever seus próprios conceitos em função de algo novo que tenham aprendido com esse outro. Já os irracionais, que são a maioria, só estão preocupados em vencer a discussão, em impor suas próprias convicções ao outro e a destruir as dele. Os sábios, como Sócrates, sabem que nada sabem e que, quanto mais aprendem, mais consciência têm do que ainda falta descobrir. Por sua vez, os estúpidos acham que já sabem tudo, que não têm nada a aprender e muito a ensinar, que qualquer um que os corrija, ainda que com toda a delicadeza e com argumentos sólidos, é um arrogante e impertinente. E, assim, as pessoas racionais e de bom senso vão sendo obrigadas a tomar sua dose diária de cicuta enquanto o mundo marcha a passos largos para seu desfecho trágico. Mas, como diz o título daquele filme de 1956 e também da canção de Lulu Santos, assim caminha a humanidade.

A era das rãs escaldadas

No livro A rã que não sabia que estava cozida, Olivier Clerc narra uma fábula que pode ser resumida mais ou menos assim. Ponha uma rã numa panela com água e embaixo um pequeno fogo. No começo, a rã vai achar agradável a água ligeiramente morna e continuará nadando tranquila. Após algum tempo, a temperatura da água começará a ficar um pouco desagradável, mas a rã não fará nada, até que, uma hora, a água já estará tão quente que a rã, totalmente debilitada, não poderá mais reagir e acabará morta e cozida. Se, em vez disso, jogássemos a rã diretamente na água quente, ela imediatamente saltaria para fora da panela e se salvaria.

Essa metáfora nos mostra que, quando as mudanças são lentas, mesmo que para pior, quase não as percebemos e, por isso, não reagimos a elas. Coisas que causariam indignação algumas décadas atrás hoje são tidas como normais. Algumas até nos incomodam, mas estamos tão anestesiados pela água morna que não esboçamos nenhuma reação concreta a elas até que seja tarde demais, até que estejamos todos cozidos — ou fritos!

Pense em como era o mundo 50, 60 anos atrás. Havia crimes, pois a violência existe desde os tempos das cavernas, mas não se falava em crime organizado (a não ser a máfia dos filmes de gângster), não havia Comando Vermelho nem PCC, o mundo não era refém do tráfico de drogas, não havia celulares nas prisões nem sequestros relâmpago.

Cinco décadas atrás, droga era coisa de hippies e cantores de rock’n’roll; não havia crianças fumando crack nas esquinas nem adolescentes roubando para financiar o vício ou trabalhando orgulhosos para o tráfico. Cinco décadas atrás, já havia megacidades, mas ninguém se queixava do trânsito, da poluição, do clima. Não se falava em ecologia, aquecimento global, superpopulação… Temia-se uma terceira guerra mundial, vivia-se a Guerra Fria, mas no fundo sabíamos que nenhum dos dois lados seria louco de apertar o botão vermelho. Hoje, a Terceira Guerra, nuclear, está batendo à nossa porta, o perigo mora ao lado, o terror está pulverizado por todos os cantos, e qualquer cidadão, com ou sem turbante, é um homem-bomba em potencial.

Hoje, cidades do mundo inteiro estão infestadas por legiões de miseráveis — árabes em Paris, africanos em Madrid, turcos em Berlim, georgianos e casaques em Viena, chicanos em Nova York, nordestinos e bolivianos em São Paulo, brasileiros em todos os lugares — logo nós que antes éramos um país de imigrantes!

Há cinco décadas, crianças falavam e se comportavam como crianças, respeitavam os adultos e sonhavam ganhar de Natal uma patinete ou uma boneca. Crianças brincavam de bola e amarelinha nas ruas sem medo e cresciam sadias. Não havia videogames nem programas infantis eróticos na TV. Aliás, quase não havia TV naquela época. Obesidade infantil quase só existia nos manuais de medicina.

Naquela época, estudantes e seus pais respeitavam professores. Aliás, os pais dos alunos sabiam da importância do estudo e se importavam com a educação de seus filhos. Naquela época, era impensável um estudante matar um professor. Massacres em escolas eram coisa de americanos.

Não éramos escravos da internet nem vítimas de spams, vírus, cavalos de troia, adwares, spywares, telemarketing, marketing viral, menus eletrônicos, secretárias eletrônicas, malas diretas e toda essa parafernália inventada pela publicidade para nos enganar e nos obrigar a consumir. Ódio sempre existiu, mas não havia empresas lucrando com sua veiculação. Hoje, estou escrevendo este artigo; talvez daqui a alguns meses o ChatGPT esteja fazendo isso em meu lugar.

Há cinquenta anos, casamentos já não eram mais arranjados pelos pais, mas tampouco se desfaziam à primeira briga. Romantismo, cavalheirismo, cordialidade, urbanidade eram coisas tão comuns que sua ausência era simplesmente inconcebível.

Tudo tão diferente da rudeza dos nossos tempos…

Até pouco tempo atrás, telenovelas eram uma forma de arte, filmes tinham história e não efeitos especiais, o rádio e a televisão entretinham com conteúdo, música sertaneja era coisa de sertanejos, e podia-se ver Milton Nascimento e Chico Buarque no horário nobre. Aliás, a música popular brasileira era realmente popular. E não era preciso pagar para assistir a canais com alguma qualidade (hoje nem os canais pagos têm qualidade!).

Naquela época, rebeldes eram os Beatles, e ninguém precisava de smartphone ou laptop para viver. Tênis de corrida eram usados exclusivamente para correr, e adolescentes não se matavam por eles.

Há pouco mais de 20 anos, fanatismo religioso era visto com estranheza e não como virtude, duvidar da ciência era prova de insanidade ou de burrice, e era possível ser moderno sem ser devasso.

Nesse tempo não tão distante assim, ficávamos indignados e nos mobilizávamos contra a injustiça, a corrupção, a violação dos direitos e da dignidade humana, enfim, éramos politizados sem ser chatos. As bandeiras que defendíamos eram realmente justas e não mimimi.

Em resumo, se olharmos para trás, veremos que a realidade vem piorando dia a dia em todos os aspectos — político, econômico, social, cultural —, mas temos a impressão de que ainda dá para suportar mais um pouco. Afinal, a água ainda está apenas morna. Só que o fogo está aceso, e a água continua esquentando. Até quando?

Nossa ética egocêntrica

Minha mais recente postagem gerou certa polêmica entre amantes dos animais e amantes de um bom churrasco. Na verdade, diante das mudanças climáticas, da iminente destruição do planeta pelo ser humano, mas também diante de uma certa evolução da consciência humana que se inicia no Renascimento e na Revolução Científica do século XVII e continua com o Iluminismo do século XVIII, pregando valores humanistas de democracia, igualdade e fraternidade, tendemos cada vez mais a olhar com compaixão para seres que antes víamos apenas como objetos utilitários. Afinal, antes da Revolução Industrial, do petróleo e da eletricidade, os animais eram os motores da indústria, os meios de tração e transporte e, evidentemente, como o são até hoje, nossa principal fonte de alimento.

Mas, muito antes disso, desde que saímos das cavernas e nos tornamos animais gregários, percebemos que era preciso estabelecer regras de conduta para o convívio social, pois, se cada um fizesse o que bem entendesse, agindo segundo seus próprios instintos como se estivesse na selva, esse projeto coletivo chamado sociedade sucumbiria ao caos e à barbárie. Por isso, os gregos inventaram uma coisa chamada ética, um conjunto de preceitos do que se deve ou não fazer tendo por base o princípio de que se deve buscar o bem comum; seu lema é: não faça aos outros o que não quer que façam a você. Se todos seguirem esse lema, todos serão felizes e viverão em harmonia.

O problema é que a ética inventada pelos gregos e seguida por todos até hoje é fundamentalmente antropocêntrica, isto é, toma o ser humano como o centro do Universo e a medida de todas as coisas. Essa ideia foi também reforçada tempos depois pelo cristianismo, para quem o homem é a imagem e semelhança de Deus, e este teria criado o próprio Universo para usufruto humano (“Não sou o dono do mundo, mas sou filho do dono”, dizem os evangélicos). Logo, ao homem tudo é permitido, pois tudo o que foi criado por Deus nos pertence e dele podemos dispor ao nosso bel-prazer, especialmente a natureza e, com ela, os animais. O Deus judaico-cristão Javé até apreciava sacrifícios de animais em sua honra. (Na verdade, Javé via com bons olhos até sacrifícios humanos, só que estes foram abandonados quando começaram a se chocar com a ética grega do Ocidente cristianizado.) Mas outras religiões, com seus deuses, também realizavam sacrifícios humanos e animais (estes últimos algumas ainda realizam), pois todas as religiões pressupõem deuses que criaram o mundo para o deleite e usufruto dos homens.

Em resumo, o ser humano criou para si uma ética conveniente a si próprio, em que define certo e errado sempre em função de seu próprio interesse. A ética religiosa, também chamada de moral, segue o mesmo princípio. Por exemplo, os antiabortistas argumentam que é um crime interromper a gestação ainda nas primeiras semanas, pois a vida humana, segundo eles, se inicia na concepção. Resta saber o que eles entendem por vida humana. E por que essa vida seria mais valiosa que a de um animal não humano.

Um embrião humano de algumas semanas de existência é desprovido de sistema nervoso central, portanto não tem sensações, não sente dor nem tem sentimentos ou pensamentos; numa palavra, não é um ser senciente, dotado de consciência, sabedor de que está vivo e de que tem um futuro pela frente. Nesse sentido, um embrião nessa fase é menos “vivo” que uma formiga ou uma barata. No entanto, os antiabortistas não hesitam em pisar em formigas ou abater baratas com inseticida, embora defendam com unhas e dentes a “vida” de um embrião que nada mais é do que um amontoado de células, um mero projeto de ser vivo que ainda não está, rigorosamente, vivo. Mas, nesse caso, a crença religiosa no caráter divino e sagrado da vida humana se sobrepõe a todo o conhecimento científico sobre o que é realmente a vida. Logo, a discussão sobre a liberação do aborto, que deveria ser pautada pela racionalidade e pelo bom senso, se vê turvada pela crendice e pelo fanatismo. Paradoxalmente, alguns antiabortistas chegam a ameaçar de morte médicos que se proponham praticar — legalmente, é preciso ressaltar! — abortos, pois, segundo a ética desses grupos, a vida de um embrião desprovido de consciência vale mais que a do médico que apenas cumpre seu dever legal e que tem família, amigos, uma carreira, lembranças do passado, planos para o futuro…

A questão de se devemos ou não comer carne e outros derivados de animais ou pelo menos se o modo como criamos esses animais para o abate ou a exploração de seus derivados acaba sendo tratada segundo uma ética muito conveniente aos nossos próprios interesses, inclusive os financeiros. Não importa se estou impingindo dor inimaginável a seres que têm sentimentos, laços afetivos, sentem amor, prazer, alegria, tristeza, medo, desde que eu esteja cumprindo a nobre missão de gerar empregos e matar a fome dos humanos. E se eu estiver ganhando dinheiro com isso, que mal tem?

Somos tão antropocêntricos que nossa própria legislação, fundada na ética greco-judaico-cristã, pune com muito mais rigor uma simples injúria contra um ser humano do que o assassinato de um animal. Só que a psiquiatria forense já demonstrou que quem é cruel com animais também é cruel com pessoas. E que, ao prendermos hoje o assassino de um animal, estaremos salvando vidas humanas amanhã. Só falta os juristas e os legisladores compreenderem isso.

A ética deveria ser um conjunto de princípios de conduta visando a proporcionar o bem. Mas o bem de quem? Os gregos, criadores da ética, tinham escravos, e o bem dos escravos não importava aos seus senhores, afinal trata-se de uma ética seletiva: devemos fazer o bem, mas escolhemos arbitrariamente quem serão os destinatários desse bem. Entre o meu interesse e o seu, deve prevalecer o meu, o do meu grupo, da minha etnia, da minha classe social, da minha espécie animal. A própria ciência moderna, ao submeter animais a dolorosos — e por vezes inúteis — experimentos para desenvolver tratamentos para o sofrimento humano, se vale dessa ética seletiva: faça o bem, mas veja a quem!

Se somos os donos do planeta, ou os filhos do dono, então podemos tudo em nosso próprio proveito, tudo é lícito se for para o nosso bem. Só que o planeta está começando a cobrar a conta por essa arrogância humana. Embora tenhamos inventado deuses que são nossa imagem e semelhança, que perdoam todos os nossos pecados e que nos autorizam a fazer o que for melhor para nós nesse mundo que eles supostamente criaram, o Deus verdadeiro, isto é, a natureza, aplica sobre nós suas leis implacáveis. Mesmo com nossa ética egocêntrica e arrogante nos dizendo que estamos certos, estamos começando a pagar caro e de forma irreversível por nossa presunção.