Fazer uma vaquinha

Eis que eu recebo e-mail de uma plataforma especializada em fazer vaquinhas virtuais, isto é, em arrecadar fundos por meio da internet para ajudar causas como, por exemplo, o acolhimento de animais abandonados, o qual traz uma explicação para o surgimento da expressão “fazer uma vaquinha” que compartilho com vocês com a ressalva de que não sei ao certo se está correta ou não. Portanto, leiam a explicação como algo possível e verossímil, mas não necessariamente verdadeiro.

Diz o e-mail:

A expressão “fazer uma vaquinha” começa a ser difundida no ano de 1920 graças ao futebol!
Naquela época, os jogadores não ganhavam salários nem próximos dos que são pagos hoje em dia. Na verdade, muitos nem ganhavam salários.
Então, a torcida costumava se reunir e juntar uma graninha pra ajudar os jogadores, assim eles se sentiriam mais motivados nas partidas, pois o valor variava de acordo com o desempenho na partida jogada.
Os valores eram nomeados de acordo com o jogo do bicho (que só foi definitivamente proibido nos anos 1940). Ou seja, 5 mil réis era “um cachorro”, 10 mil réis era “um coelho” e o prêmio máximo era de 25 mil réis, ou “uma vaca”.
A partir daí, o termo “fazer uma vaquinha” se difundiu pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil.

Como dizem os italianos, se non è vero, è bene trovato.

Linguística e espiritismo

O espiritismo é uma religião considerada por muitos de seus adeptos como ciência, já que lida com fenômenos observáveis, como mediunidade, telecinesia (movimentação de objetos a distância), xenoglossia (capacidade de falar línguas estrangeiras sem conhecê-las) e psicografia, dentre outros. O espiritismo, assim como outras correntes espiritualistas, é uma religião, dado o seu caráter doutrinário, fortemente ligado ao Cristianismo. Ao mesmo tempo, não pode ser considerado plenamente uma ciência, já que suas “pesquisas” não obedecem rigorosamente ao método científico.

Há quem afirme que a ciência tradicional não se interessa pelos chamados fenômenos paranormais, dentre os quais está a comunicação mediúnica, rejeitando tais fenômenos a priori, numa atitude preconceituosa. Preconceitos à parte, um dos entraves à investigação científica da mediunidade está no fato de que os próprios médiuns muitas vezes se opõem à metodologia utilizada pela ciência (utilização de sensores cerebrais, filmagem da sessão, instalação de aparelhagem eletrônica de alta sensibilidade no ambiente, etc.) dizendo que essa parafernália atrapalha o contato com os espíritos.

De todo modo, há certos procedimentos que podem, se não comprovar ou desmentir de forma patente tais fenômenos, ao menos lançar alguma luz numa eventual investigação legitimamente científica. E grande parte desses procedimentos envolve a linguística.

No caso de um documento psicografado por um médium, a primeira providência seria um exame grafológico do manuscrito, comparando-o a textos que se sabe com certeza terem sido escritos à mão pelo falecido. A grafologia não é parte da linguística, mas não deixa de analisar um aspecto da expressão verbal dos indivíduos, isto é, a caligrafia.

Entrando agora no terreno propriamente linguístico, é possível fazer uma análise estilística dos textos ditados pelo espírito de um determinado autor com textos que ele tenha produzido em vida. Existem técnicas estatísticas que permitem reconhecer a frequência de emprego de palavras e construções sintáticas típicas de uma pessoa, pois todos nós temos nossas idiossincrasias linguísticas e tendemos a usar com mais frequência certos vocábulos, campos semânticos e estruturas gramaticais, que se repetem como um padrão individual. Mesmo que procuremos camuflá-lo, esse padrão está presente em nossas produções linguísticas como uma sequência de DNA ou uma impressão digital.

Evidentemente, esse tipo de teste é mais fácil de fazer em relação a espíritos que ditam longos textos (como é o caso de romances psicográficos) e que, em vida, já tinham larga produção escrita. (O problema aqui é que grande parte dos best-sellers espíritas tem autores que não deixaram nada escrito em vida, assim como a maioria dos grandes escritores mortos não continua produzindo literatura no além-túmulo.)

Outro teste que pode ser feito utilizando conhecimentos linguísticos é a análise fonética da fala do médium durante a incorporação. Assim como a mente que controla a mão do médium durante a psicografia é a do espírito e não a do próprio médium, é de se supor que quem está no controle do aparelho fonador do médium em transe é o espírito incorporado. Se for possível gravar essa fala e compará-la a alguma elocução verbal que o morto tenha deixado gravada, pode-se dizer se as duas enunciações, embora feitas com vozes diferentes, têm características acústico-articulatórias que permitam atribuir ambos os atos de fonação à mesma pessoa.

É claro que, mesmo se esses resultados forem positivos, a decisão de reconhecer que houve de fato comunicação com o Além ainda permanece subjetiva (por exemplo, um juiz pode ou não aceitar um depoimento psicografado como prova num processo judicial). Mas, seja como for, a linguística é uma ciência que pode contribuir para gerar dados empíricos um pouco mais sólidos do que temos hoje, quando a questão da existência ou não de mediunidade se limita ao campo das opiniões e das crenças.

O problema agora é que, segundo afirmam alguns espíritas, os espíritos desencarnados têm habilidades que não tinham quando se encontravam encarnados num corpo humano. Assim, um tribuno romano que só falava latim pode ditar um romance em português brasileiro, embora nem a língua portuguesa nem o Brasil existissem no tempo de Roma, e embora ele jamais tivesse se aventurado na literatura em vida. É por essas e por outras, muito mais do que por preconceito dos estudiosos, que a investigação científica nesse terreno avança a passos de tartaruga – se é que avança.

O que o câncer tem a ver com o caranguejo?

Este fim de semana foi marcado pela tristeza de duas grandes perdas: a morte da atriz Eva Wilma e a do prefeito de São Paulo Bruno Covas, ambas causadas pelo câncer.

Falar sobre essa doença ainda é tabu para certas pessoas, que, imbuídas da chamada concepção metonímica de signo, acreditam que o nome é a própria coisa nomeada e que, portanto, pronunciar o nome é invocar a coisa. Por isso muitos ainda dizem que fulano morreu da doença ruim, daquela doença ou mesmo daquilo.

Mas por que o câncer tem esse nome? Em latim, cancer quer dizer simplesmente “caranguejo”, da mesma forma que o grego karkínos (de carcinoma, por exemplo). Aliás, em alguns horóscopos, o signo de câncer é mencionado como caranguejo. Mas os médicos da Antiguidade já atribuíam à doença esse nome. A explicação corrente é que o tumor canceroso se espalha pelo corpo como as patas e pinças do caranguejo, ou que as próprias ramificações do tumor lembram os membros desse crustáceo.

No entanto, o etimologista Mário Eduardo Viaro, meu colega na USP, propõe outra explicação para essa denominação. Segundo ele, o que motivou a analogia não foi propriamente o caranguejo e sim a craca, um outro crustáceo, que adere à superfície do primeiro e ali vive como parasita. Esta sim, a craca, teria o aspecto similar ao de um tumor maligno. Tanto que uma certa doença que atinge os chifres dos bovinos e os deixa com aspecto apodrecido também é chamada de craca, embora não tenha nenhuma relação biológica com a craca marinha.

Mas de onde vem a palavra latina cancer? A hipótese mais provável é que proceda de um latim arcaico *carcros por dissimilação dos dois rr, em que o primeiro deles se transformou em n. Isso se confirma pelo testemunho do grego karkínos (de *karkrínos, igualmente com dissimilação) e também do sânscrito karkaṭaḥ, “caranguejo”,  e karkaraḥ, “duro”. Todas essas palavras remontam à raiz indo-europeia *kar-, “duro”, que deu também o inglês hard. Ou seja, trata-se de uma referência à carapaça dura do crustáceo.

A própria palavra portuguesa caranguejo provém do latim vulgar cancridium, diminutivo de cancer. É interessante que em Portugal a doença, cujo nome técnico é neoplasia maligna, se chame cancro, denominação que se dá no Brasil a outro tipo de doença, de natureza venérea. Aliás, essa distinção brasileira entre câncer e cancro também é feita em francês e inglês, línguas em que temos cancer e chancre.

O (extenso) espectro das cores em português

Praticamente todas as línguas do mundo têm nomes para cores. Algumas línguas de povos tribais, como o bassa, da Libéria, ou o pirahã, do Brasil, têm apenas dois nomes. Em bassa há um nome de cor que resume o que chamamos de “cores quentes” do espectro luminoso (do vermelho ao amarelo) e outro para as “cores frias” (do verde ao violeta). Em pirahã, só há termos para “claro” e “escuro”.

Mas a maioria das línguas de povos “civilizados”, isto é, que vivem em cidades e não em tribos, têm seis ou sete cores básicas: as famosas sete cores do arco-íris. Só que a civilização moderna nos obrigou a nomear uma série de outros matizes para os quais não havia nomes herdados quer do latim quer do germânico, nossas duas principais fontes de étimos para colorações.

Além das cores básicas e mais comuns (branco, preto, azul, vermelho, verde, amarelo), tivemos de arranjar nomes para outros tons comuns e fomos buscá-los nos nomes de coisas que tinham tal tonalidade. Assim surgiu o laranja (uma fruta), o rosa (uma flor), o marrom (“castanha” em francês), o cinza (da cinza das fogueiras), o violeta (outra flor), o anil (nome de planta em árabe), o bege (provavelmente do italiano bambagia, “algodão”, pelo francês), o creme (um alimento), o esmeralda (um mineral) e assim por diante.

Então veio a indústria de tecidos e seu corolário, a indústria da moda, com uma gama muito mais específica de cores. Surgiram então nomes como grená, ocre, cáqui, solferino… Só para se ter um exemplo, o que um simples mortal chama de marrom um estilista pode denominar castanho, terra, camurça, café com leite, tabaco, chocolate e mais uma enormidade de matizes indistinguível aos olhos do leigo. Isso sem falar nos adjetivos apostos ao nome da cor que lhe dão uma especificidade quase infinita: azul petróleo, azul-marinho, azul-celeste, azul jacinto… (Não me perguntem por que alguns desses nomes levam hífen e outros não!)

Por incrível que pareça, até o branco e o preto admitem nuances: branco gelo, branco neve, preto absoluto, preto azulado. Basta ver o catálogo de cores das agências de automóveis para constatar que, mesmo numa mesma marca, o vermelho capri de um ano é substituído pelo vermelho carrara do ano seguinte, o verde montana pelo verde amazônia, o azul polara pelo azul flash – ufa, haja criatividade para bolar nomes!

Por essa e por outras, certo está um primo meu que foi a uma concessionária comprar um carro. Ao que o vendedor lhe perguntou “Que cor o senhor prefere?”, meu primo respondeu: “Qualquer uma, eu vou andar dentro do carro e não fora”.

Como se referir a nove gêmeos?

Esta semana foi anunciado que uma mulher no Marrocos deu à luz nove crianças gêmeas. O fato é tão inusitado que jamais havia ocorrido antes e nem os cientistas imaginavam que isso fosse possível. Mas esse prodígio não afeta apenas a medicina, afeta também a língua, afinal como podemos nos referir a essas crianças numa única palavra?

Sabemos que dois bebês que nascem ao mesmo tempo de uma mesma barriga materna são gêmeos; que três bebês em tal situação são trigêmeos; que quatro são quadrigêmeos, e assim por diante. Mas até agora a conta parava em cinco ou, no máximo, seis. Como nunca houve notícia de nove gêmeos, a palavra para denominar essa situação terá de ser criada. Minha sugestão é nonagêmeos. O raciocínio é o seguinte: se os prefixos (na realidade, semipalavras) tri- e quadri- provêm do latim, é de se esperar que o prefixo relativo a “nove” também tenha essa origem. Pois esse prefixo em latim é nona-, daí termos nonagêmeos. Não creio que essa palavra chegue a ser dicionarizada, uma vez que esse parto nônuplo talvez nunca mais se repita. Mas o exemplo serve para mostrar como a língua busca soluções para novos problemas, como denominar algo que até então não existia e passa de repente a existir.

Fica aí a minha sugestão de neologismo.

A origem da palavra “trabalho”

Hoje, Dia do Trabalho, o assunto não podia ser outro se não ele mesmo, o trabalho – ou melhor, a palavra trabalho. Se hoje se acredita que o trabalho dignifica o homem (isto é, o ser humano, o que inclui evidentemente as mulheres), a origem da palavra não é tão digna assim. Afinal, durante muito tempo, a ideia de trabalho esteve ligada às classes mais baixas da sociedade, ou seja, escravos, servos e operários. Tanto que trabalho se origina do latim tardio tripalium, um instrumento de tortura formado de três estacas de madeira cruzadas (tripalium quer dizer literalmente “três paus”), em que os escravos eram amarrados para ser açoitados.

Essa palavra latina também passou a outras línguas românicas como o espanhol trabajo, o catalão treball e o francês travail, sempre com o sentido de “trabalho”. Do francês, passou ao inglês travel, “viajar”, pois, segundo consta, as estradas inglesas na Idade Média eram tão ruins que viajar por elas era um verdadeiro suplício.

Menos estigmatizada que trabalho era a palavra lavor, do latim labor, tanto que os intelectuais não se referiam à sua atividade como um trabalho e sim como um lavor do espírito.

Labor e seu derivado laborare deram em português, além de lavor, o verbo lavrar (isto é, trabalhar a terra para semeá-la) e, deste, os substantivos lavra e lavrador, assim como lavoura (do latim laboria, derivado de labor). “Trabalho” em italiano é até hoje lavoro, derivado de lavorare, do latim laborare. Esse verbo também aparece em termos cultos como elaborar e colaborar, designativos de ações que implicam a ideia de trabalho: elaborar é criar do nada, e colaborar é trabalhar juntos.

O adjetivo “trabalhista” em espanhol é laboral e o partido trabalhista inglês é o Labour Party.

Mas também em outros idiomas a palavra para “trabalho” remete às classes baixas. Por exemplo, o alemão Arbeit provém de uma raiz indo-europeia *orbh, que significava “órfão” (por sinal, o português órfão vem do grego orphanós, que descende dessa raiz indo-europeia). Mas o que tem o órfão a ver com trabalho? É que, na Antiguidade e Idade Média, as crianças órfãs eram recolhidas pelas famílias na condição de serviçais, ou seja, não tinham os direitos que tem hoje uma criança adotada; os órfãos eram meros prestadores de serviços, em troca dos quais recebiam casa e comida, mas não tinham direito a herança. (E aqui vai mais uma curiosidade: a palavra alemã para “herdeiro” é Erbe, que também procede da raiz indo-europeia *orbh. É que o herdeiro só tinha acesso aos bens dos pais quando estes morressem, ou seja, quando se tornasse órfão.

Mas vou parando por aqui porque este texto está me dando trabalho, e hoje, Dia do Trabalho, é dia de descanso. Até a próxima!