A pronúncia correta de “Roraima”

A atual crise na Venezuela, com suas repercussões no Brasil, mais especificamente na cidade de Pacaraima, em Roraima, suscita uma questão polêmica de língua portuguesa que de quando em quando vem à tona: qual é a pronúncia correta do nome do estado de Roraima – e agora também da cidade de Pacaraima. Como se pode perceber nos noticiários do rádio e da TV, alguns repórteres pronunciam “roráima”, com a aberto, enquanto outros dizem “rorâima”, com a fechado – e por vezes nasalizado (“rorãima”) –, mas todos pronunciam “pacaráima”.

Tradicionalmente, as pessoas do norte do país pronunciam “roráima” enquanto no sul predomina “rorâima” ou “rorãima”. Até que a televisão (leia-se Rede Globo) passou a impor, via locutores, a pronúncia com a aberto, para estranheza daqueles que preferem o a fechado quando seguido de consoante nasal (e em Roraima temos um m na sílaba seguinte).

A suposta justificativa dos produtores de TV, escorada em alguns gramáticos de pouca ou nenhuma formação científica, é que essa é a pronúncia corrente entre os próprios roraimenses (também conhecidos como “macuxis”). Isso traz à baila uma questão que tratei no texto Artigo de estado, publicado na revista Língua, n.º 81, de julho de 2012, sobre se a maneira dos próprios moradores de pronunciar o nome do lugar onde vivem deve ter preferência sobre outras. E argumentei que não. Aliás, muitas pessoas pronunciam errado o nome de suas ruas e bairros, especialmente quando se trata de nomes estrangeiros. Mas, mesmo quando se trata de nome vernáculo, se este admite como correta mais de uma forma, qualquer uma delas é legítima, não importa se é a mais usual entre os habitantes do local ou não.

É preciso lembrar que em português não há oposição fonológica (isto é, distinção de significado) entre vogais abertas e fechadas antes de consoante nasal. Por isso, tanto faz pronunciar “bánana” ou “bânana”, “nóme” ou “nôme”, “fizémos” ou “fizêmos”. Quer sejam pronunciadas abertas ou fechadas diante de m ou n, as vogais a, e e o não alteram o significado da palavra, diferentemente do que ocorre em outros contextos (por exemplo, leste com e fechado é pretérito do verbo ler; já com e aberto é um dos pontos cardeais). Por isso, aliás, a distinção ortográfica entre Brasil e Portugal em palavras como génio/gênio, económico/econômico, etc., é desnecessária. Poderíamos adotar qualquer uma das grafias como sendo a única, e cada povo continuaria a pronunciar como sempre pronunciou, afinal a ortografia só precisa dar conta daquilo que é fonologicamente pertinente, isto é, distingue significados. É por essa razão que, quer pronunciemos o o de nome como aberto ou fechado, a grafia é uma só: a diferença de pronúncia é um fenômeno de fala, não de língua.

Em relação a Roraima, qual é então a pronúncia correta, ou a mais recomendável: “rorâima” ou “roráima”? Se em português os timbres aberto e fechado do e e do o se neutralizam antes de m ou n, no caso de á e â, não há oposição fonológica nunca, o que equivale a dizer que os dois sons representam sempre o mesmo fonema (tecnicamente diríamos que são alofones do mesmo fonema /a/). O único caso de distinção apontado por algumas gramáticas mais conservadoras seria o da primeira pessoa do plural dos verbos da primeira conjugação, em que, por exemplo, chegamos é presente e chegámos é pretérito. Só que chegámos só existe em português lusitano, e não é possível postular a existência de um fonema com base em um único caso. Como resultado, podemos dizer “bânana” ou “bánana”, “Jáime” ou “Jâime”, “páineira” mas “pâina”, “plâino” mas “apláinar”, e assim por diante. Logo, podemos pronunciar indiferentemente “roráima” ou “rorâima”: ambas as pronúncias são corretas e legítimas em português. E, curiosamente, nenhuma delas corresponde à pronúncia original do nome no idioma taurepang, que é “roraíma”.

Quanto a Pacaraima, a única pronúncia em circulação é a dos próprios moradores da cidade, isto é, com a aberto, visto que, até estourar a crise dos imigrantes venezuelanos, ninguém no centro-sul do Brasil havia ouvido falar dessa pequena cidade.

A origem do terrorismo – e da palavra que o designa

Esta semana ficou marcada por pelo menos três ataques violentos – em Suzano (São Paulo), Christchurch (Nova Zelândia) e Utrecht (Holanda) – que podemos, sem dúvida, chamar de atentados terroristas, não importa se seus autores pertencem a organizações políticas consagradas a espalhar ódio, terror e pânico na sociedade ou se são meros “lobos solitários”, designação que se dá ao terrorista isolado, que pode até agir inspirado em alguma organização desse tipo, mas que formalmente não pertence a ela.

Nesses tempos de ódio generalizado, em que todos parecem estar contra todos, e as pessoas buscam motivos para sentir-se ofendidas, vale a pena revisitar a história das palavras atentado e terrorismo.

A primeira remonta ao latim tardio attentatum, “tentativa”, particípio do verbo attentare, também encontrado nas formas adtentare e attemptare, que, segundo o Dicionário Latino-Português de Francisco Torrinha, significa “pôr a mão em; tocar em; experimentar, ensaiar, tentar”, mas sobretudo “atacar, atentar contra”. Esse verbo, por sua vez, é um derivado de tentare ou temptare, que deu “tentar” e “tentação” em português e provém de uma raiz indo-europeia (sobre o indo-europeu, leia o meu artigo Em busca das laringais perdidas, neste mesmo blog) *ten‑, que significava algo como “segurar, estender, esticar, retesar”, presente em verbos latinos como tenere, que deu o nosso “ter”, e tendere, que resultou no português tender, atender, estender, etc.

terrorismo é palavra cunhada originalmente em francês à época da Revolução Francesa (final do século XVIII). Sua motivação é o período que ficou conhecido como o Terror (1793-1794), comandado por Maximilien de Robespierre, líder dos jacobinos, ocasião em que milhares de pessoas morreram na guilhotina.

Sua primeira acepção, de 1794, era “doutrina dos partidários do Terror”; em português, o termo teve seu primeiro registro em 1836.

Mas terrorismo deriva do latim terror, terroris, “terror, medo”, substantivo proveniente do verbo terrere, “tremer (de medo)”. Que é parente de tremere, “tremer”, e ambos radicam no indo-europeu *ter‑, “tremer”. Portanto, terrorismo é a prática da disseminação do terror entre as pessoas por meio de ações violentas. O sufixo ‑ismo, que primariamente evocava a ideia de “doutrina”, passou a indicar uma tática política.

O curioso é que a prática de atentados terroristas é muito mais antiga que a palavra, pois já existia na Antiguidade, segundo nos informa a Britannica Concise Encyclopedia. Entretanto, nada que se comparasse ao que estamos presenciando hoje em dia, especialmente depois do 11 de Setembro. Parece que este será o Século do Terrorismo, turbinado ainda pela internet e as redes sociais. É esperar para ver.

A tragédia de Suzano e os eufemismos da crônica policial

Eu havia programado outro assunto para tratar aqui no blog no dia de hoje, mas o massacre ocorrido em Suzano, SP, esta manhã me fez refletir sobre várias coisas: sobre os limites da maldade humana (ou a inexistência deles); sobre psicopatas que circulam discretamente entre as pessoas de bem e o risco que oferecem de, a qualquer momento, cometer as piores atrocidades; sobre o pânico dos jovens que presenciaram a chacina; sobre a dor dos familiares; sobre a facilidade de acesso às armas de fogo e a flexibilização da legislação a esse respeito… Mas, linguista que sou, chamou-me a atenção em especial o modo como a lei brasileira – e por tabela a imprensa – trata os crimes cometidos por menores. Os dois autores da matança de hoje de manhã, um de 17 e o outro de 25 anos, estão sendo chamados pelos telejornais de assassinos, e seu ato de crime hediondo, horrível massacre, chacina sanguinária, e por aí vai. No entanto, tivesse o menor de 17 anos, de nome Guilherme Taucci Monteiro, sido capturado vivo e não se suicidado, sua identidade não teria sido relevada, seu rosto apareceria na TV coberto por uma tarja preta ou então desfocado, estaria ele sendo chamado de “menor infrator”, e a barbárie que cometeu seria classificada como “ato infracional”. Mas como ele está morto, sabemos seu nome e sua face e podemos chamá-lo pelo que ele realmente é: um assassino. Ou seja, uma vez morto o criminoso, cessa a hipocrisia, e o nefasto linguajar politicamente correto não mais se aplica.

Com a violência crescente que assola o país, é cada vez mais comum ler ou ouvir notícias como “o menor foi apreendido pela polícia” ou “os suspeitos fugiram num carro roubado e trocaram tiros com os policiais”. A adoção pelos meios de comunicação do jargão jurídico costuma ser uma imposição dos “manuais de redação e estilo”, cartilhas elaboradas por cada veículo de imprensa para balizar a linguagem utilizada por seus redatores. Esses manuais foram instituídos para padronizar os textos de uma determinada publicação, conferindo-lhe uma marca própria, e também para limitar a liberdade criativa dos jornalistas, evitando que algum deles empregue termos cuja interpretação possa trazer problemas ao jornal, como um processo judicial, por exemplo.

A questão é que, ao fazer uma opção equivocada, o criador do manual propaga seu equívoco a todos os integrantes da redação. A meu ver, é bem esse o caso do emprego do juridiquês na pauta jornalística. Afinal, o repórter não escreve para juristas, mas para leitores leigos. E em tempos em que a impunidade institucionalizada bate em nossa cara todos os dias, palavras que amenizam a culpabilidade dos criminosos soam como um acinte à sociedade.

Suspeito

Segundo o Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, suspeito é o indivíduo “1) De quem há suspeitas ou desconfianças; 2) De fé ou integridade moral duvidosa. 3) Que dá causa ou origem a dúvidas, que não merece confiança. […] 8) Que parece ou se supõe ter algum defeito ou vício […]”. Ora, a suspeita é da esfera da dúvida, da possibilidade, não da certeza. Qual é a probabilidade de que indivíduos que fogem em alta velocidade num carro roubado e trocam tiros com a polícia sejam cidadãos de bem e não bandidos? Não se trata aí de possibilidade, mas de certeza.

O que acontece é que, no jargão jurídico, um indivíduo é suspeito até ser formalmente indiciado; a partir desse momento, passa a acusado e, só após a condenação em última instância, é que pode ser oficialmente chamado de criminoso. Trata-se de um cuidado que respeita o princípio da presunção de inocência. No entanto, a imprensa é a voz da sociedade, ela fala pela e para a sociedade. Logo, se por um lado os jornais não podem julgar e condenar, pois isso é prerrogativa do Poder Judiciário, por outro, soa hipócrita apresentar como mera hipótese a culpa de alguém preso em flagrante delito ou foragido em carro roubado após troca de tiros.

Apreendido

A mesma crítica pode ser feita a termos como “apreender um menor”, “ato infracional”, “medida socioeducativa”, etc. Se, para os operadores do direito, menores não cometem crimes, não podem ser presos nem cumprir pena (e por isso se instituíram eufemismos para falar sobre a criminalidade dos que têm menos de 18 anos), para a sociedade, um assassinato bárbaro praticado por um elemento de 17 anos e 362 dias não é um mero ato infracional, como o prova o atual clamor pela redução da maioridade penal. A questão é: de que lado estão os elaboradores de manuais de redação e estilo: do lado da sociedade, que clama por justiça, ou do lado dos juristas e legisladores, cuja concepção de justiça só é justa na opinião dos próprios?

Isso explica o sucesso dos programas de TV do chamado “jornalismo justiceiro”. Embora tenham um indisfarçável viés mercadológico, tais programas dizem o que o público quer ouvir e, por isso mesmo, têm tanta audiência. Nem é preciso ir tão longe: muitos comentaristas sérios, que diante das câmeras têm linguagem mais comedida, aproveitam os jornais e o rádio para, sem caluniar, injuriar ou difamar ninguém, “dar nomes aos bois”, tratando por bandido quem é bandido e por corrupto quem é corrupto. Afinal, a mesma justiça que presume a inocência do réu garante a chamada exceção da verdade: não é crime acusar alguém de um ato que ele efetivamente praticou.

De resto, meus sinceros sentimentos aos familiares das vítimas. E minha torcida para que essa prática da chacina em escolas, tão comum nos Estados Unidos, não vire moda no Brasil.

As controversas origens do Carnaval

Terminado o Carnaval (será que terminou mesmo?), republico aqui um artigo que publiquei no ano passado, acrescido de alguns novos dados, face à oportunidade da data e visto que ganhei muitos leitores desde então. Trata-se da origem da palavra Carnaval.

A etimologia da palavra Carnaval é uma das mais controversas que existem. Assim como a origem dessa festividade remonta à Pré-História e a ritos pagãos da fertilidade, em que se comemorava o início do ano agrícola e pedia-se aos deuses uma boa safra, a origem da palavra também se perde na escuridão do passado. Alguns autores, como Körting (Lateinisches-Romanisches Wörterbuch, “Dicionário Latino-Românico”), sustentam que teria vindo do latim carrus navalis, barco ornamentado que entre os romanos abria desfiles alegóricos como os das Saturnalia e das Bacchanalia, festas em celebração da chegada da primavera e do vinho.

Outros, porém, como Antenor Nascentes, na esteira de vários estudiosos, apontam a origem em carnem levare, “suspender a carne”, isto é, suprimir o consumo desse alimento durante a Quaresma, portanto já no período cristão do Império Romano. Wilhelm Meyer-Lübke, no seu Romanisches Etymologisches Wörterbuch (Dicionário Etimológico Românico), dá essa origem para o francês e o provençal. Policarpo Petrocchi apresenta o baixo latim carnelevamen, depois modificado para carnelevare, como étimo do antigo pisano carnelevare, do napolitano carnolevare, do calabrês carnalevare, do siciliano carnilivari, do vicentino carlavare e do veneziano carlevar. A forma primitiva carnelevare teria sido depois mudada para carnelevale em milanês (1130) e, por etimologia popular, em carne, vale!, isto é, “adeus, carne!”. Essa etimologia é confirmada por Corominas em seu Breve Diccionario Etimológico de la Lengua Castellana. Já o Duden – Das Herkunftswörterbuch, o principal dicionário etimológico do alemão, apresenta ambas as hipóteses, dando, no entanto, mais crédito à segunda.

Em espanhol, a forma paralela carnal teria sido a responsável pela mudança da vogal, de carneval para carnaval. A ideia básica de suspensão do consumo de carne é reforçada por formas paralelas como o espanhol carnestolendas  e o catalão carnestoltes (ambas do latim tollere, “retirar”), o italiano carnelasciare e carnasciare, assim como o romeno lăsatul de carne, todas do latim laxare, “deixar, abandonar”. O próprio latim já apresentava carneprivium, “privação da carne”, o que dá alguma convicção a essa etimologia. De certo, somente que o antecessor do termo em todas as línguas modernas é o italiano carnevale, especialmente em face da grande fama dos carnavais italianos (o de Veneza, principalmente) durante a Renascença.