As duas maneiras de sofrer

Nos últimos anos, o Brasil tem sofrido com três crises: sanitária, política e econômica. Muitos sentiram na pele – e principalmente nos pulmões – os efeitos da covid-19, outros padeceram a perda de entes queridos, e muitos mais sofreram com o isolamento forçado. Além disso, sofre-se atualmente com a inflação alta e o desemprego idem, além das constantes ameaças à nossa democracia. Mas, diante de tanto sofrimento, vocês sabiam que em português há duas maneiras de sofrer?

A palavra “sofrer” chegou ao português por herança do latim sufferre, passando pelo estágio intermediário sufferere (ou sufferrere) no latim vulgar. Os dicionários registram basicamente duas acepções para essa palavra: padecer, ter dor física ou moral (“Meu avô sofreu muito antes de morrer”; “Ele está sofrendo por amor”); e suportar, ser submetido a, passar por (“Meu avô sofreu uma cirurgia”; “Meu time sofreu uma fragorosa derrota” “Os vírus sofrem mutação”).

A primeira acepção é geralmente intransitiva e admite o substantivo deverbal (isto é, derivado de um verbo) “sofrimento”. A segunda é transitiva e não tem deverbal. Pode-se até pensar que quem sofre uma cirurgia ou uma derrota de alguma forma tem dor. Talvez por isso tal verbo, que em latim significava originalmente “sustentar”, tenha assumido também o sentido de “padecer”.

O latim sufferre é formado de sub- (sob, embaixo, de baixo para cima) e ferre (levar, transportar). Portanto, significa levar algo sobre si, estando embaixo da coisa transportada. Como carregar coisas – especialmente pesadas – não é tarefa das mais agradáveis, sufferre logo passou a ter o sentido de “padecer”, para o qual o latim já dispunha do verbo pati (no latim vulgar, patere), do qual derivaram palavras como “paixão”, “passivo”, “paciente”, etc. Em Valério Máximo temos stuprum pati coacta (forçada a sofrer estupro). E em Sêneca, iniuriam pati (sofrer uma injúria).

No entanto, o latim também tinha um terceiro verbo com o mesmo significado: subire, formado de sub- e ire (ir para debaixo de, portanto, submeter-se ou ser submetido a), que também significa “subir” (isto é, “ir de baixo para cima”), sentido que passou ao português.

Curiosamente, outras línguas europeias usam dois verbos diferentes para as acepções “padecer” e “submeter-se”, em geral empréstimos respectivamente de sufferre e subire. No francês temos souffrir e subir; no italiano, soffrire e subire; no inglês suffer e undergo, este último tradução de subire (under = sub, go = ire).

O que se nota é que tanto sufferre quanto subire contêm o prefixo sub-, que significa “embaixo, de baixo”. Assim, em ambos os casos há a ideia de rebaixamento, inferioridade, submissão. Metaforicamente, quem padece uma dor ou se submete a uma experiência está debaixo de algo. Podemos pensar no escravo que sofre ao carregar peso ou que sofre um castigo. No paciente (do latim patiens, “aquele que padece”) que sofre uma cirurgia, situação em que está deitado e tem os cirurgiões trabalhando por cima. Na coluna que suporta (do latim supportare, “levar, portar embaixo”) o edifício. Ou ainda no trabalhador que sustenta (do latim sustentare, forma intensiva de sustinere, “segurar por baixo”) a família.

Consequentemente, o sentido básico de ambos os verbos sufferre e subire é o de suportar, sustentar, isto é, ficar embaixo de algo, resistindo para não deixar cair. Como o velho Atlas, mítico rei da Mauritânia que, segundo a lenda, tendo-se recusado a hospedar Perseu, foi por este metamorfoseado em montanha – o monte Atlas, no norte da África. Como essa montanha era a mais alta dentre as conhecidas pelos gregos, surgiu o mito de que Atlas suportava o céu sobre os ombros. Não por acaso, as estátuas que representam esse personagem o mostram com uma fisionomia sofredora.

Provador ou provadouro?

Prezado Aldo, as lojas de roupas geralmente têm uma cabine para provar as peças chamada ‘provador’. Fiquei pensando se esse nome está correto, afinal provador é aquele que prova, não? Assim como investigador é quem investiga, consumidor é quem consome, etc. Em suma, o sufixo mais adequado para indicar lugar onde se faz algo não é -douro? Ou seja, o lugar onde se prova roupas não deveria ser provadouro em vez de provador? Obrigado.
Laerte Munhoz dos Santos

Laerte tem toda a razão. Embora a palavra provadouro não conste em nossos dicionários nem no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), o que significa que esse vocábulo rigorosamente não existe, a cabine de prova (que em francês se chama cabine d’essayage e em inglês, fitting room) é o local onde se experimenta a roupa a ser comprada. O sufixo -dor, de fato, indica o chamado nomen agentis, isto é, serve para formar palavras que designam o autor de uma ação, seja ele uma pessoa, animal ou máquina: vendedor, investidor, predador, roedor, computador, acelerador. Já o sufixo -douro é apropriado para formar nomes de lugares em que se faz algo: ancoradouro, matadouro, nascedouro, sorvedouro. Portanto, o lugar onde se provam roupas deveria ser o provadouro. Deveria ser, mas não é.

Os dicionários Houaiss e Michaelis definem provador como aquele que prova, especialmente, o profissional encarregado de provar vinhos, cafés, etc. Mas o Houaiss também reconhece a acepção “cabine onde se provam roupas”. Curiosamente, o espanhol também oferece a palavra probador nesses dois sentidos (e em espanhol o sufixo que forma lugar onde se faz algo é -dero, portanto probador deveria ser probadero, igualmente inexistente).

O que tudo isso significa? Que a língua nem sempre se pauta pela lógica, mas existe uma força poderosíssima, contra a qual nem mesmo os gramáticos mais respeitados conseguem agir, chamada uso. Parece ter sido o que ocorreu a provador: seu emprego com o sentido de lugar, embora inadequado (assim como o é o emprego de babador em lugar de babadouro), acabou de tal modo consagrado que mudar esse estado de coisas hoje parece impossível. Tanto que os próprios dicionários reconhecem tal acepção. E se esse uso equivocado do sufixo se dá também em espanhol, é talvez porque as duas línguas tenham em algum momento compartilhado o termo. Como se trata de conceito ligado ao comércio, é bem possível que comerciantes pouco afeitos à morfologia da língua tenham confundido os sufixos, instituindo um novo significado de provador em vez de cunhar o termo provadouro. A seguir, o vocábulo transpôs as fronteiras, passando do português ao espanhol, ou vice-versa. O fato é que, mesmo sendo fruto de um equívoco, a palavra provador está dicionarizada como cabine de prova, logo seu emprego nesse sentido é legítimo.

Riberrô? Vierrá?

Outro dia ouvi num intervalo comercial de uma TV pública que uma certa cantora lírica francesa, cujo nome me parece que era Catherine Ribeiro (ou Marguerite, ou Jacqueline…), viria se apresentar no Brasil. O curioso – e, para mim, principalmente irritante – é que o locutor pronunciava o seu sobrenome como “riberrô”. Tudo bem que os franceses pronunciem nomes estrangeiros à moda deles, afinal nós também fazemos isso. Aliás, todos os povos fazem isso. É por essa razão que eles pronunciam os sobrenomes do falecido antropólogo Lévi-Strauss (de origem alemã) e do eterno craque do futebol Platini (do italiano) como “levistrrôss” e “platiní”, respectivamente. Como esses sobrenomes são estrangeiros também para nós, tanto faz dizê-los à maneira dos franceses, dos alemães ou dos italianos. Optamos então por pronunciá-los como os próprios donos dos sobrenomes os pronunciam. Pela mesma razão, o linguista Noam Chomsky é conhecido como “tchómski” tanto aqui quanto nos EUA, sua terra natal, embora a pronúncia original do sobrenome, de origem judeu-russa, seja “khómski”.

Agora, pronunciar à moda estrangeira nomes que são legitimamente portugueses já é demais! Lembro que nas Copas do Mundo de futebol de 1998 e 2002 tivemos que aguentar os narradores esportivos brasileiros chamando os jogadores franceses Vieira, Pires e Fernandez de “vierrá”, “pirrés” e “fernandês”. (Na contramão dessa tendência, esses mesmos narradores chamam o futebolista colombiano James Rodríguez de “rames”, à moda espanhola, quando os próprios colombianos – e o próprio detentor do nome – o chamam de “djeims”, tal como o fazem os ingleses, criadores do nome.)

Mas será que os franceses são tão zelosos assim com nossa pronúncia quando se referem a brasileiros com nomes de origem francesa, como o infeliz eletricista-confundido-com-terrorista Jean Charles de Menezes, morto pela polícia londrina em 2005? Há no Brasil uns poucos sobrenomes franceses, como Bittencourt e Fleury, que pronunciamos erradamente como “bitencur” e “fleurí” quando o certo seria “bitãcur” e “flörrí”. E também pronunciamos Jean como “jiã” e não “jã”, e Charles como “xarles” e não “xarl”. Também temos inúmeros brasileirinhos chamados Rian (ou Ryan), nome inglês que virou moda nas classes mais baixas, onde são chamados de “riã” e não de “ráian”. E “riã” (isto é, rien) quer dizer “nada” em francês. Se for mesmo verdade que um nome pode determinar o futuro de uma pessoa…

Mas voltando ao ponto: será que franceses e ingleses pronunciam Jean, Charles, Rian, Bittencourt e Fleury à moda brasileira quando os donos de tais nomes são nossos patrícios? Certa vez ouvi numa emissora de rádio em Buenos Aires o locutor mencionar um filósofo suíço de nome Rota Punto Rota Punto Ru-ce-au e só após alguns segundos de perplexidade compreendi tratar-se de J. J. Rousseau (ou melhor, Jean-Jacques Rousseau), que muitos no Brasil, inclusive na universidade, tratam na intimidade por “jiã-jaques”.

O chauvinismo linguístico

Chauvinismo é o sentimento patriótico exagerado e fanático, que leva o indivíduo a supervalorizar as qualidades de seu país, ao mesmo tempo em que despreza ou abomina tudo que é estrangeiro. Logo, o chauvinista é também um xenófobo, quando não um racista. De modo mais geral, o termo se aplica igualmente a qualquer defensor radical de um conceito, ideia ou ideologia, que tem atitude agressiva contra todos que sejam contrários ao objeto de sua defesa.

Embora apenas uns poucos tenham esse sentimento exacerbado ou sejam capazes de atitudes virulentas, é muito comum que as pessoas nutram um sentimento de amor ao próprio país pelo simples fato de terem nascido nele. Nesse sentido, o chauvinismo nacional decorre do desconhecimento de outras nações e outras culturas.

Da mesma forma, é muito comum o chauvinismo linguístico, o amor que o falante tem pela própria língua, independente de qual seja, apenas pelo fato de que é a língua que ele fala, a primeira – e, na maioria das vezes, a única – que aprendeu.

Gostar ou não gostar de alguma coisa, seja um país, uma cultura, uma língua ou o que quer que seja, é algo bem subjetivo: em geral, não temos motivos racionais para essa ou aquela preferência, mas somos movidos apenas por sentimentos. E estes, muitas vezes, nos são inculcados desde a infância pelos pais, professores, sacerdotes, governantes, meios de comunicação, etc.

No entanto, para a pessoa que crê, sua crença tem valor de verdade. A maioria dos brasileiros, inclusive os que passam as maiores privações neste país, acha o Brasil a melhor nação do mundo. Obviamente, americanos, franceses, japoneses, costa-riquenhos e ugandenses pensam o mesmo de seus países.

De igual maneira, o chauvinismo também aflora quando o assunto é a língua. Já perdi a conta de quantas vezes ouvi brasileiros dizerem que o português é um idioma belíssimo, que nenhum outro consegue expressar tão bem e de forma tão poética os sentimentos humanos, que nossa língua é a mais linda e perfeita do mundo, e por aí vai. Chauvinismo puro!

Em primeiro lugar, de um ponto de vista estritamente objetivo, não há línguas melhores ou piores: toda língua é igualmente eficiente em sua função de comunicação. Todos os povos usam diariamente seus idiomas nas mais diversas situações de modo fluente e eficaz. Todo idioma dá conta das necessidades de pensamento e expressão dos seus falantes dentro de sua cultura específica.

Em segundo lugar, se quisermos medir de alguma forma e segundo algum critério a “qualidade” das línguas em termos de sua simplicidade, facilidade de aprendizado, praticidade de criar novas palavras, etc., devemos recorrer a uma área da ciência chamada linguística comparada ou comparativa, que faz o cotejo e a análise das semelhanças e diferenças estruturais entre as línguas de todos os seus pontos de vista: fonético, fonológico, morfológico, sintático, lexicológico, semântico e até ortográfico.

Em outro artigo, falei sobre essa especialidade linguística, à qual me dedico formalmente há pelo menos 30 anos e informalmente desde a adolescência. Por meio dela, é possível dizer que o português não é das línguas mais complexas do mundo, mas é mais complexa gramaticalmente do que a maioria de suas irmãs românicas, tendo uma série de irregularidades estruturais que outras línguas não têm ou têm em menor grau, ou, ainda, já tiveram, mas eliminaram. Por exemplo, o português é a única língua-padrão europeia a ter mesóclise, futuro do subjuntivo, pretérito mais-que-perfeito sintético e infinitivo pessoal. É também a língua com a colocação pronominal mais cheia de regras. Do meu ponto de vista particular, embora nenhuma língua seja perfeita (nem o esperanto, idioma artificial extremamente simples em todos os aspectos), há várias línguas próximas ao português com gramática mais simples, pronúncia mais suave e grafia mais lógica do que ele. Quanto a questões subjetivas, como a expressividade ou a beleza poética do idioma, posso garantir que, nas mãos do bom poeta e do bom escritor, qualquer língua é um instrumento perfeito para criar beleza e eloquência.

Mas o chauvinismo linguístico, alheio a todas essas considerações de cunho técnico-científico, endeusa a língua pátria e a cultura que ela expressa sem se dar conta da real importância que essa língua e cultura têm no concerto mundial.

Assim, os falantes ufanistas do português ignoram que nosso idioma, embora seja o quinto mais falado no mundo, só detém essa posição por causa da grande população do Brasil. E que, mesmo sendo muito falada, é muito pouco difundida internacionalmente. Como resultado, também a literatura e a cultura veiculadas por ela são pouco conhecidas, com exceção talvez de Paulo Coelho, das telenovelas brasileiras, do nosso futebol e de alguns artistas da MPB. Em termos de relevância ou interesse dentro da própria Europa, o português ocupa mais ou menos a mesma posição que o norueguês ou o polonês.

No aspecto político, econômico, científico e tecnológico, nenhum país lusófono tem destaque mundial. Portugal foi um grande império colonial no século XVI, mas, mesmo assim, jamais foi uma potência política ou militar na Europa, capaz de influir nos destinos da história do continente, que sempre girou em torno de players mais centrais, como a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Áustria e a Itália. Mesmo países periféricos como a Espanha, a Suécia e a Rússia tiveram papel maior que Portugal na história europeia e ocidental. O Brasil é, sem dúvida, a nação lusofalante mais destacada no plano econômico, mas ainda uma economia secundária e pouco confiável. No terreno político, nem Brasil nem Portugal têm peso em termos globais. (Que dirá os demais países de língua portuguesa, como Angola, Cabo Verde ou Timor Leste!) Na verdade, grande parte do noticiário sobre nós que chega ao mundo desenvolvido trata de mazelas como fome e doenças ou acontecimentos folclóricos, como o mau comportamento de nossos dirigentes.

Por tudo isso, vejo com perplexidade e certo desalento as manifestações chauvinistas com relação ao nosso país e à nossa língua. Falta-nos um certo senso de realidade. Mas fazer o quê? A maioria dos povos do mundo não têm nenhuma razão objetiva para se orgulhar de si mesmos, mas se orgulham. O chauvinismo é próprio da natureza humana.