Uma pergunta sobre o prefixo “mis-”

Bom dia,

Fiquei curioso com o prefixo mis- em palavras como misógino, misantropo etc. É um prefixo grego? E em palavras do Inglês como misconceptions, misguided e o verbo miss (dar falta), onde também parece dar a idéia de mal ou coisa errada, é da mesma raiz? Imagino que o pronome de tratamento miss, senhorita, já seja de outra raiz, correto?
Um abraço,
Cleverson

Cleverson, o prefixo mis‑ (na verdade, um prefixoide, ou elemento de composição) de misantropo e misógino vem do grego mîsos, que quer dizer “ódio”, portanto temos “ódio à humanidade”, “ódio às mulheres”, etc.

Já o prefixo inglês mis‑ de misguided, misconception, etc., é o resultado do cruzamento de dois prefixos semelhantes, mas de origem diferente: o inglês antigo mis‑, da mesma origem do verbo to miss (antigo inglês missan, “errar, falhar”), e o antigo francês mes‑“(francês atual mé‑), do latim minus, “menos”, que aparece no português menosprezar (francês mépriser).

Finalmente, o pronome de tratamento Miss, “senhorita”, é uma redução de mistress, do francês antigo maistresse (francês atual maîtresse), “senhora, mestra”, que no inglês atual deu Missis, “senhora”.

O dengo e a dengue

Ainda nem bem terminou a pandemia de covid-19, e o Brasil já vê explodirem os casos de dengue, mal que nos assola quase todos os anos dada a dificuldade no combate ao seu transmissor, o mosquito Aedes aegyptii, em parte por descaso de parcela da população, que deixa água acumulada em vasos, latas, pneus, piscinas não tratadas e outros repositórios de água parada que servem de criadouro ao inseto.

Mas de onde veio a palavra que nomeia essa doença? Há uma controvérsia sobre isso. Alguns dicionários trazem dois verbetes distintos com a denominação dengue, o que configuraria um caso de homonímia. Temos então dengue1, proveniente do quimbundo ndenge, cuja forma paralela é dengo, que significa “birra, melindre, faceirice, requebro”. É aquele charminho que as crianças — e também certos adultos, especialmente mulheres — fazem, donde chamá-los de dengosos. E temos também dengue2, de origem castelhana, referente à doença contagiosa propriamente dita.

Só que o dicionário etimológico Corominas da língua espanhola só registra uma entrada para dengue e a ela atribui tanto o significado de “melindre” quanto o de “doença epidêmica”. Segundo essa obra, por sinal um dos melhores dicionários etimológicos que existem, tal palavra seria de origem expressiva na primeira acepção e relacionada a outras, como dingolondango, “mimo”, tenguedengue, “melindre, afetação”, e tenguerengue, “a ponto de cair”. Portanto, justamente aquela acepção que em português se atribui ao quimbundo, língua africana falada em Angola, parece ser tão castelhana quanto a segunda, a de doença.

No entanto, como a palavra data em espanhol de 1732, época em que os colonizadores ibéricos já traficavam escravos da África, não é impossível que a língua espanhola tenha tomado o vocábulo do quimbundo. Quanto aos supostos cognatos dingolondango, tenguedengue e tenguerengue, tudo pode não passar de mera coincidência. Esses impasses deixam louco qualquer etimólogo.

Pelo menos, no Brasil fazemos a distinção entre o dengo, isto é, a qualidade de quem é dengoso, e a dengue, enfermidade que mata pessoas todo ano, de modo que, qualquer que seja a origem da palavra — ou das palavras, caso sejam de fato homônimas —, jamais associamos os sintomas da infecção com uma possível frescura do doente.

A origem da palavra “Carnaval”

Já que estamos em pleno Carnaval, é sobre ele que vamos falar hoje.

A etimologia da palavra Carnaval é uma das mais controversas que existem. Assim como a origem dessa festividade remonta à Pré-História e a ritos pagãos da fertilidade, em que se comemorava o início do ano agrícola e pedia-se aos deuses uma boa safra, a origem da palavra também se perde na escuridão do passado. Alguns autores, como Körting (Lateinisches-Romanisches Wörterbuch, “Dicionário Latino-Românico”), sustentam que teria vindo do latim carrus navalis, barco ornamentado que entre os romanos abria desfiles alegóricos como os das Saturnalia e das Bacchanalia, festas em celebração da chegada da primavera e do vinho.

Outros, porém, como Antenor Nascentes, na esteira de vários estudiosos, apontam a origem em carnem levare, “suspender a carne”, isto é, suprimir o consumo desse alimento durante a Quaresma, portanto já no período cristão do Império Romano. Wilhelm Meyer-Lübke, no seu Romanisches Etymologisches Wörterbuch (Dicionário Etimológico Românico), dá essa origem para o francês e o provençal. Policarpo Petrocchi apresenta o baixo latim carnelevamen, depois modificado para carnelevare, como étimo do antigo pisano carnelevare, do napolitano carnolevare, do calabrês carnalevare, do siciliano carnilivari, do vicentino carlavare e do veneziano carlevar. A forma primitiva carnelevare teria sido depois mudada para carnelevale em milanês (1130) e, por etimologia popular, em carne, vale!, isto é, “adeus, carne!”. Essa etimologia é confirmada por Corominas em seu Breve Diccionario Etimológico de la Lengua Castellana. Já o Duden – Das Herkunftswörterbuch, o principal dicionário etimológico do alemão, apresenta ambas as hipóteses, dando, no entanto, mais crédito à segunda.

Em espanhol, a forma paralela carnal teria sido a responsável pela mudança da vogal, de carneval para carnaval. A ideia básica de suspensão do consumo de carne é reforçada por formas paralelas como o espanhol carnestolendas, o catalão carnestoltes (ambas do latim tollere, “retirar”) e o italiano carnelasciare e carnasciare, assim como o romeno lăsatul de carne, todas do latim laxare, “deixar, abandonar”. O próprio latim já apresentava carneprivium, “privação da carne”, o que dá alguma convicção a essa etimologia. De certo, somente que o antecessor do termo em todas as línguas modernas é o italiano carnevale, especialmente em face da grande fama dos carnavais italianos (o de Veneza, principalmente) durante a Renascença.

Mentiras “linguísticas” reveladas

Hoje reproduzo um artigo magistral do meu amigo, o gramático, linguista e professor Fernando Pestana, que desmascara a falsa ciência que vem sendo feita por certos colegas linguistas em nome de uma pauta ideológica, que desvirtua métodos, falsifica dados, ignora fatos para fazer triunfar dentro das universidades uma agenda política. Eis o artigo.

Há três frases — atribuídas aos escritores Millôr Fernandes, Anaïn Nis e Bertolt Brecht — que me marcaram profundamente:

1. Jamais diga uma mentira que não possa provar. (MF)
2. A origem da mentira está na imagem idealizada que temos de nós próprios e que desejamos impor aos outros. (AN)
3. Quem conhece a verdade e a chama de mentira é um criminoso. (BB)

No artigo do linguista Marcos Bagno intitulado “Norma linguística, hibridismo e tradução” (2012), lê-se o seguinte:

Aqueles que, por outro lado, usam a expressão “norma culta” como um conceito, como um termo técnico, agem exatamente ao contrário: primeiro investigam a atividade linguística dos falantes em suas interações sociais, para depois dizer o que é essa atividade, por meio de instrumental teórico consistente. Com base nessa investigação e nessa análise é que os linguistas podem AFIRMAR, por exemplo, que o PRONOME ‘CUJO’ DESAPARECEU DA LÍNGUA FALADA NO BRASIL, inclusive da língua falada pelos BRASILEIROS CLASSIFICADOS DE CULTOS; que o FUTURO SIMPLES DO INDICATIVO (eu cantarei) também SOBREVIVE APENAS na escrita mais formal… (p. 24; grifos meus)

Sim. Foi exatamente isso que você leu. Em outras palavras, frases como “Moramos num país CUJA população é pouco letrada” e “Só INICIAREI a palestra daqui a pouco” só sobreviveriam na escrita mais formal do brasileiro culto, e não em sua fala. Será?

[Mas o que é um brasileiro culto? De acordo com a opinião de muitos linguistas brasileiros influentes, os falantes CULTOS são “definidos por dois critérios de base: escolaridade superior completa e antecedentes biográfico-culturais urbanos” (Bagno, 2012:24). Basta preencher esses dois critérios e, num passe de mágica, você se torna uma pessoa culta.]

Segundo esse linguista, sem apresentar nenhuma fonte comprobatória, as pesquisas científicas do português brasileiro falado comprovam que o pronome relativo “cujo” DESAPARECEU (puf!) na fala dos brasileiros (inclusive cultos); além disso, de acordo com Bagno, os brasileiros cultos NEM SEQUER usam na sua fala as formas verbais simples de futuro do presente do indicativo.

Note que o estudioso generaliza, pondo no mesmo balaio todos os cientistas, como se a sua palavra fosse a batida do martelo em nome da ciência, a respeito desse pleno sumiço do pronome “cujo” e do “futuro simples” da fala dos brasileiros: “Com base nessa investigação e nessa análise é que OS LINGUISTAS podem afirmar…”. Olha o maroto artigo definido aí.

Ora, é verdade que todos os linguistas pensam assim? Espero que se manifestem os linguistas que me leem.

Será que os brasileiros cultos realmente não usam mais o “cujo” e as formas verbais no futuro do presente simples em sua fala? Aguardo os comentários de vocês, leitores brasileiros.

Será que esses dois fatos linguísticos estão mortos e enterrados na fala do brasileiro, conforme ensinado por Bagno e outros que com ele concordam?

Ainda que se defenda a ideia de que o pronome relativo “cujo” não faz parte da gramática internalizada do falante contemporâneo (em geral), faz parte da gramática adjacente. Afinal, nem todas as formas linguísticas são internalizadas, e sim adquiridas no ambiente escolar e/ou a partir do letramento eficiente — e que bom! É desse modo que nos valemos de novas formas da língua, como certas conjugações verbais, certos empregos e colocações pronominais, certas regências, certas concordâncias, etc. para podermos transmitir, de modo mais pleno e diversificado possível, os nossos pensamentos. Logo, tais formas adjacentemente naturais existem, do contrário não seriam produtos humanos de ordem linguístico-cultural.

Diremos, então, que essas formas adquiridas e produzidas por meio do contato com a norma culta INEXISTEM na fala do brasileiro? Não faz o menor sentido.

O fato de umas serem, na fala de brasileiros cultos, mais (ou menos) frequentemente usadas do que outras não as torna necessariamente arcaísmos ou fósseis linguísticos, como obviamente é o caso destes sepultados anacronismos (na fala): a apossínclise, o haver existencial antecedido de sujeito, muitas formas da 2ª pessoa do plural, certas locuções verbais, certas regências, certos gêneros de substantivos, certas formas verbais abundantes, certas contrações pronominais, etc.

Importante: nossa religião, como cientistas da linguagem, deve ser a busca pela verdade para que ela nos liberte das mentiras. Para isso, é preciso HONESTIDADE INTELECTUAL. Não diga amém a tudo que você lê no ambiente acadêmico. Faça o que deve ser feito: conteste, questione, busque os fatos e o rigor do método, sempre!

Foi o que fiz. Convidei 10 alunos meus (professores de Português) para analisarmos a linguagem falada pelos brasileiros — sobretudo os considerados “cultos” — durante todo o mês de janeiro de 2024: foram 31 dias ouvindo brasileiros falando, a fim de rastrear esses únicos dois fatos linguísticos ditos inexistentes (!) da norma brasileira falada.

Pois bem… Chegou a hora. Eis a metodologia usada e os resultados:

1. Abrimos o YouTube.

2. Assistimos aos vídeos de canais, programas, podcasts, debates e afins cujos convidados são, segundo os critérios atuais dentro da Linguística brasileira, cidadãos brasileiros enquadrados como cultos — jornalistas, políticos, comentaristas políticos, professores, juristas, teólogos, linguistas, filósofos, historiadores, empresários…

3. Procedemos à pesquisa durante todos os dias do mês de janeiro. Os vídeos foram quase todos desses últimos anos, sobretudo de 2023. Tomamos o cuidado de não repetir os vídeos analisados; no entanto, caso tenha havido alguma repetição, não foi intencional.

4. Observamos, com calma e atenção, a fala espontânea dessas pessoas, nas situações mais formais de comunicação, em geral. Importante: só buscamos avaliar o discurso falado delas; portanto, citações de terceiros e leituras de texto escrito não foram computadas em nossa pesquisa — caso tenha havido algum equívoco pontual nesse sentido, não foi intencional.

5. Foram anotadas todas as ocorrências das duas estruturas gramaticais ditas inexistentes no português brasileiro (o pronome relativo “cujo” e as formas verbais simples do “futuro do presente do indicativo”), neste esquema:

a) o link do vídeo;
b) o nome do canal;
c) a data;
d) o título do vídeo;
e) o nome completo de cada indivíduo e sua profissão (alvo das anotações); e
f) a minutagem exata de cada ocorrência das duas estruturas gramaticais a ser analisadas.

6. Como resultado, chegamos (I) ao seguinte número de horas analisadas, (II) ao grupo de falantes diferentes (considerados “cultos”, segundo os critérios atuais) e (III) à quantidade de ocorrências do futuro do presente simples e do pronome relativo “cujo”:

I. 134 horas, 29 minutos e 6 segundos;
II. 103 falantes diferentes;
III. Futuro do presente simples: 251 ocorrências; pronome relativo “cujo”: 16 ocorrências.

[Importante: aos 45 do segundo tempo, no apagar das luzes, um amigo me indicou um site que rastreia o uso de palavras e expressões faladas em vídeos no Youtube. Como encontramos poucas ocorrências do pronome relativo “cujo” nessa peneira tradicional durante 31 dias de investigação, o que já seria suficiente para derrubar a falsa narrativa de que esse pronome não existe mais na fala do brasileiro, como advoga Marcos Bagno no já citado artigo, decidi sozinho ir atrás dos dados de fala nesse site. Resultado: o “cujo” (e suas flexões) foi empregado CENTENAS de vezes. Eis o site, já com o link engatilhado, para você conferir com os seus próprios olhos e ouvidos: https://pt.youglish.com/pronounce/Cujo/portuguese]

Resumo da ópera: será que “os linguistas podem afirmar, por exemplo, que o pronome ‘cujo’ desapareceu da língua falada no Brasil, inclusive da língua falada pelos brasileiros classificados de cultos; que o futuro simples do indicativo (eu cantarei) também sobrevive apenas na escrita mais formal”, como assevera o linguista Marcos Bagno?

Os dados mostram que a afirmação dele está comprovadamente EQUIVOCADA e, por isso, em respeito à ciência da linguagem, deve ser ignorada — afinal, tanto o “cujo” quanto o “futuro do presente simples” existem inequivocamente na norma linguística brasileira.

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Agora faça um exercício imaginativo intelectualmente honesto: já pensou se essa mesma pesquisa (realizada tão somente em 31 dias) fosse realizada durante longos 365 dias? Pois é… Os dados seriam MUITO maiores do que os demonstrados em nossa investigação, o que corroboraria ainda mais a existência das duas formas linguísticas no português brasileiro falado.

Encerro com um antigo provérbio judaico: “A punição do mentiroso é não se crer nele”.

Por isso, convido você a duvidar dos fatos acima. Faça você mesmo a sua pesquisa. Comprove se os dados da nossa investigação são verdadeiros ou falsos. Em ciência, não se pode ter compromisso com a fraude. Desse modo, busque a verdade e o rigor do método, porque fatos não se importam com opiniões.

Só assim é que se deve fazer Ciência.