Sobre descrever, prescrever — e mentir (ou “A falácia do espantalho”)

Recentemente, o linguista Marcos Bagno publicou no site da Editora Parábola um artigo intitulado O certo, o errado, a ciência e a má-fé, no qual apresenta diversas informações e argumentos a respeito da linguística enquanto ciência e de sua tarefa de descrição da língua que merecem alguma reflexão.

Bagno começa explicando que a gramática, também chamada de gramática normativa ou gramática tradicional, nascida na Grécia Antiga, tem por objetivo fixar uma norma, isto é, um padrão, para a língua. Em suas palavras,

[f]ixar uma norma significa, inescapavelmente, fazer escolhas, e fazer escolhas significa, inevitavelmente, descartar tudo o que sobra depois de feita a seleção. O que a norma seleciona então passa a ser o certo, o correto, o aceitável, enquanto o que não entra na norma é o anormal, o equívoco, o que deve ser evitado.

É evidente que toda norma, seja ela linguística, técnica, jurídica ou de qualquer outra espécie, opera escolhas — quase sempre segundo critérios razoáveis — cuja observância  passa a ser recomendável (em alguns casos obrigatória) pelos profissionais da respectiva área. Logo, toda norma diz o que deve ou não deve ser feito em tal ou qual situação. Por exemplo, os plugues e as tomadas atualmente em uso no Brasil (maldosamente chamadas de “tomadas do Lula”) seguem um modelo determinado pela ABNT — Associação Brasileira de Normas Técnicas. Isso significa que todos os fabricantes de plugues, tomadas, máquinas, eletrodomésticos e aparelhos elétricos em geral devem seguir esse modelo. É claro que um determinado fabricante pode produzir e colocar no mercado produtos fora desse padrão, só que, por razões óbvias, eles não terão aceitação, pois o plugue não encaixará na tomada. É claro também que o modelo escolhido como padrão poderia ser outro, mas a ABNT deve ter tido boas razões técnicas para eleger o que está atualmente em uso.

A norma gramatical funciona da mesma maneira que as normas da ABNT: é preciso que haja uma padronização da linguagem escrita formal para que as pessoas se entendam sem equívocos ou ambiguidades em atos de comunicação que impliquem grande responsabilidade. A gramática não obriga ninguém a escrever segundo suas normas, mas, em muitos casos, sobretudo profissionais, quem não o fizer estará sujeito a sanções, que podem ir desde a mera advertência até a perda do emprego.

A seguir, Bagno explica que a linguística nasceu como ciência descritivo-explicativa no século XIX e que, como toda ciência, não faz juízos de certo e errado, mas analisa os fenômenos linguísticos de forma objetiva. Nesse sentido, reconhece que muitos fatos apontados pela gramática como erros são, na verdade, formas desviantes que denunciam o fenômeno da mudança linguística, isto é, da evolução histórica da língua. E Bagno enumera uma série de exemplos de como palavras do latim se transformaram até chegar ao português, o que demonstra que ele não faltou às aulas de linguística histórica. E argumenta corretamente que nada na língua é por acaso (aliás, esse é o título de um de seus livros): as mutações seguem padrões fixos e previsíveis, o que contempla um dos princípios básicos de toda ciência, que é o chamado determinismo científico (as mesmas causas, nas mesmas condições, devem produzir sempre os mesmos efeitos).

Mas Bagno confunde alhos com bugalhos ao confrontar o trabalho do linguista com o do gramático. O primeiro analisa a língua como ela é, em todas as suas variedades, inclusive as variedades não padrão, isto é, aquelas que costumamos atribuir às pessoas menos letradas, pois “o erro de hoje pode vir a ser o acerto de amanhã”. Já o gramático tem a tarefa de normatizar uma variedade específica da língua, o padrão escrito formal, também chamado de norma-padrão.

Assim como os físicos estudam todos os materiais condutores de eletricidade sem fazer juízos de valor sobre eles, os linguistas estudam todas as formas de manifestação linguística sem julgá-las. Da mesma maneira, assim como os engenheiros da ABNT têm de escolher, dentre todas as possibilidades de conduzir eletricidade de uma tomada para um plugue e deste para um equipamento, um determinado modelo de plugue e de tomada, os gramáticos precisam escolher as estruturas linguísticas que farão parte da norma que orienta a redação de textos formais. E seu critério tem sido a média dos usos dos melhores prosadores contemporâneos da língua, tanto ficcionistas quanto não ficcionistas, sobre cuja alta qualidade haja consenso.

Portanto, de um ponto de vista linguístico e, por conseguinte, científico, não há certo e errado, há apenas fatos a serem descritos e explicados, o que o próprio Bagno reconhece em seu artigo. Já, de um ponto de vista normativo, que é o ponto de vista da gramática aplicada a textos formais, há o recomendável e o não recomendável — ou, se preferirem, o “certo” e o “errado”. Obviamente, a gramática não é nem nunca foi uma camisa de força, e os bons prosadores, sejam eles ficcionais, ensaísticos ou técnicos, sempre tiveram liberdade para transgredir aqui e ali as normas (assim como todos temos a liberdade de conectar um benjamim à tomada antiga para ligar um eletrodoméstico novo, que segue o atual padrão ABNT).

No entanto, Bagno afirma que “pelo fato de descrevermos e explicarmos esses fenômenos de mudança, muitas pessoas dão um salto ideológico adiante e acham que estamos ‘defendendo’ os erros e até incentivando as pessoas a ‘falar errado’”. De fato, muitos leigos em linguística nos fazem esse tipo de acusação, o que demonstra seu desconhecimento da diferença entre descrever e prescrever. O problema começa quando linguistas, que devem descrever a língua, se põem a prescrever usos distintos daqueles recomendados pelas gramáticas tradicionais, gerando desorientação na cabeça de quem apenas precisa redigir textos formais aceitáveis.

Bagno demonstra lucidez ao afirmar que “o que defendemos é que, sim, todas e todos devem ter garantido o acesso à escolarização de qualidade, a única que permite a ampliação do repertório linguístico das cidadãs e dos cidadãos, o contato com as normas de prestígio e sua inserção na cultura letrada”.

Entretanto, em sua Gramática pedagógica e em outros escritos seus, ele abona usos que de modo algum fazem parte da “cultura letrada”, como eu encontrei ele, ela está meia cansada, chegou os novos livros, e coisas do gênero.

Em primeiro lugar, não há conflito entre o fazer descritivo da linguística e o fazer prescritivo da gramática. São atividades diferentes com propósitos e objetivos diferentes. Em segundo lugar, pode-se sugerir que a gramática abone usos que já estão consagrados na escrita de pessoas cultas (e culto aqui significa “portador de alto letramento, vasto conhecimento e muitas horas de leitura” e não apenas “portador de diploma universitário e vivência urbana”), como assistir o filme paralelamente a assistir ao filme ou estou me lavando concomitantemente a estou-me lavando ou estou lavando-me. Aliás, nem é preciso sugerir: os gramáticos da atualidade já fazem isso por dever de ofício.

Mas Bagno ridiculariza a gramática e os gramáticos dizendo que “a gramática é uma ‘religião’ mais antiga que o cristianismo, o que faz as pessoas considerarem os compêndios gramaticais como livros quase sagrados, merecedores de toda reverência, e seus autores como uma casta de sacerdotes de uma seita esotérica”. E também, como é seu costume, lança insultos contra seus críticos, com termos como “má-fé encharcada de ideologia fascistoide”, “terraplanismo linguístico”, “má-fé, ignorância e alinhamento ideológico assumidamente reacionário — a santíssima trindade do fascismo clássico”, “bravatas hidrófobas”, “cão raivoso”, e várias outras ofensas. Tudo porque esses críticos, dentre os quais me incluo, apontam na obra de Bagno inúmeras inverdades, imprecisões, afirmações sem prova ou, o que é pior, alegações que vão de encontro às evidências empíricas. Não tendo como se defender, ele parte do princípio de que “a melhor defesa é o ataque”. E ainda lança mais uma inverdade: a de que a crítica recai indistintamente sobre todos os linguistas que descrevem a língua portuguesa em suas diversas variedades, como se todos eles estivessem sustentando as teses não comprovadas e não comprováveis de Bagno.

Quem me acompanha desde os tempos em que escrevia na saudosa revista Língua Portuguesa sabe que sempre advoguei uma simplificação da norma-padrão do português, a exemplo do que já aconteceu com as normas de nossas línguas-irmãs, o espanhol, o francês e o italiano. Mas “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, ou “devagar com o andor que o santo é de barro”: de um lado, pode-se perfeitamente flexibilizar a colocação pronominal (o que já acontece na prática em textos verdadeiramente cultos), até porque a regra atual é extremamente complexa; de outro lado, não se pode chancelar no âmbito da escrita culta formal usos que atualmente estão restritos à fala das pessoas de baixo letramento, como meia cansada ou chegou os livros. Talvez um dia, seguindo os metaplasmos naturais da língua que Bagno didaticamente ilustrou em seu artigo, a forma pobrema venha a ser incorporada à norma-padrão, assim como problema venha a ser apontado como arcaísmo. Mas, por enquanto, pobrema é inadmissível em textos formais, da mesma forma como fresta seria inadmissível no português do século XIII, em que o “certo” era feestra.

Em outra postagem, desta vez no Facebook, Bagno, em coautoria com Carlos Alberto Faraco, diz: “Não conheço um(a) linguista que tenha proposto que usos como ‘os menino chegou’ ou pronúncias como ‘praça’, ‘pranta’, ‘trabaio’ sejam considerados recomendáveis e dignas (sic) de figurar numa norma de referência para os usos formais da língua”. Só que em sua Gramática pedagógica, ele assevera que no português brasileiro culto, inclusive escrito, estão corretos tanto Aconteceram dois acidentes na estrada quanto Aconteceu dois acidentes na estrada.

E no próprio trecho citado acima, Bagno constrói uma oração cujo sujeito composto usos e pronúncias concorda (concorda?) simultaneamente com o adjetivo masculino considerados e o feminino dignas. Distração, falta de revisão ou mais uma inovação de sua proposta gramatical, que ele chama de “social-democrata”?! Ou seja, o esquerdista radical Marcos Bagno agora é social-democrata, ao passo que os verdadeiros social-democratas, que defendem educação de qualidade para todos em vez de um nivelamento por baixo da norma e de seu ensino, são os reacionários e fascistoides.

Uma última observação: numa terceira postagem, também no Facebook, Bagno afirma:

Não temos absolutamente nada contra quem quiser seguir à risca as prescrições tradicionais. Nosso projeto é democrático, não é autoritário: ninguém quer substituir uma norma por outra, apenas mostrar que, no século 21, é interessante que haja uma norma do século 21, em que as pessoas se reconheçam. Mas quem quiser continuar a escrever como Rui Barbosa, escreva e seja feliz, mas deixe a gente em paz.

Daí se depreendem duas conclusões.

Primeiro, que a norma proposta por Bagno e seus seguidores não quer substituir a norma-padrão vigente, mas sim conviver com ela. Então cabe a pergunta: qual das duas o cidadão comum, que precisa redigir textos profissionais, deve seguir? A coexistência de duas normas diferentes só servirá para confundir ainda mais a cabeça de estudantes e profissionais que precisam escrever.

Segundo, pessoas que seguem à risca a norma atual não estão escrevendo como Rui Barbosa — a não ser os chamados operadores do Direito, que adoram um linguajar preciosista e rebarbativo, só que estes são incorrigíveis —, mas redigem como o próprio Bagno redigiu suas três postagens aqui citadas, o que mostra que o tão propalado abismo existente entre a norma atual e o modo como as pessoas bem escolarizadas escrevem no século XXI não passa de ficção — ou de um espantalho. É bem verdade que em sua Gramática, Bagno comete vários desvios em relação à norma, mas percebe-se claramente que são desvios forçados e não espontâneos, isto é, que Bagno não escreve assim normalmente, mas “forçou a barra” na referida obra para marcar posição e com isso criar um inimigo imaginário contra o qual possa dirigir sua rebeldia sem causa.

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Em tempo: para mais informações sobre essa “falácia do espantalho”, visitem os seguintes links: https://www.facebook.com/share/p/YVDxgHB3jk7Dizdq, https://www.facebook.com/share/p/rxijwSajUgbqMj7a e https://www.facebook.com/share/p/Pa21U3sdtCtK2Ugo/?mibextid=oFDknk.

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