Por que flexionamos em gênero os numerais um e dois?

Boa noite, me chamo Rodrigo.

Acompanho seu blog (Diário de um Linguista), já há certo tempo.

Tenho uma dúvida que sempre quis saber a resposta, já perguntei a outro professor e ele não soube responder. Dado o seu óbvio conhecimento, acredito que o senhor poderia me ajudar.

Eu sempre quis saber a razão de alguns números variarem de acordo com o gênero e outros não. Entendo que o “um” varie pois além de número é artigo, mas por que há “dois” e “duas” mas não há “três” e “tresa”? Por que é correto falar que tenho duzentAs laranjas, mas não que tenho duzentas e quatrA laranjas?

Caro Rodrigo, a explicação de por que o português flexiona em gênero os numerais um, dois, duzentos, trezentos e demais centenas está no latim. Como você sabe, o português descende do latim, e nessa língua havia três gêneros: masculino, feminino e neutro. Consequentemente, o latim flexionava nesses três gêneros os numerais de um a três e mais as centenas a partir de duzentos. Tínhamos então: unus, una, unum; duo, duae, duo; tres, tres, tria; ducenti, ducentae, ducenta; trecenti, trecentae, trecenta, e assim por diante. Observe que em espanhol, francês e italiano, línguas-irmãs do português, somente o um admite flexão no feminino, os demais numerais são invariáveis. Lembro também que o numeral um não é flexionável porque também é artigo indefinido; na verdade, ocorreu o oposto: o artigo indefinido derivou do numeral, até porque em latim não havia artigos.

Mas por que os numerais acima de três não se flexionavam em latim? Para responder a essa pergunta, temos de retroceder ainda mais no tempo, até cerca de 4 mil anos a.C., quando se falava a língua-mãe do latim, o indo-europeu. Nessa língua, somente os numerais de um a três eram flexionáveis. Isso leva os linguistas históricos, como eu, a pensar que o indo-europeu descendia de uma outra língua, nomeada pelos especialistas de nostrático, que só tinha numerais de um a três, o que, aliás, é a situação verificada na maioria das línguas do mundo.

De fato, línguas ágrafas, como são os idiomas de tribos primitivas, só contam até dois ou no máximo três porque culturas simples como as tribais não têm muito o que contar. Essas línguas são chamadas de one-two-many, ou “um-dois-muitos” porque quantidades acima de dois são genericamente tratadas como “muito”.

Em resumo, o nostrático, que teria dado origem ao indo-europeu, deve ter sido falado por volta de 8 mil anos a.C. por uma população de caçadores-coletores nômades, portanto uma sociedade tribal extremamente simples.

A título de curiosidade, a origem remota do numeral latino tres é a mesma da preposição trans, que quer dizem “além” (como em transnacional, por exemplo). Ou seja, tres designava originalmente tudo o que está além de dois, algo como um, dois e o resto.

“Milhões” tem flexão de gênero?

Bom dia, Prof. Aldo! Tenho ouvido várias vezes no rádio e na TV jornalistas dizerem “duzentas milhões de pessoas”, “quinhentas milhões de vacinas”, etc. Essa concordância está correta? É que soa mal aos meus ouvidos. Obrigado.
Raul Teixeira de Mello

Caro Raul, também soa mal aos meus ouvidos. Mas a questão não deve ser se essa concordância soa bem ou mal e sim se ela tem justificativa gramatical ou não. Quando algo soa mal aos nossos ouvidos, isso pode ser indício de que, de fato, há um erro gramatical. No entanto, uma força tão poderosa quanto a escola e seu ensino de gramática normativa são os modismos linguísticos.

De fato, de algum tempo para cá pessoas andam fazendo essa concordância estranha entre numeral e substantivo. E como a evolução linguística começa sempre com uma inovação feita por um único falante que vai pouco a pouco contagiando os demais até tornar-se onipresente, não dá para prever se essa nova maneira de concordar se generalizará e virará norma ou se será apenas mais um modismo passageiro como tantos que já tivemos.

O fato é que alguns numerais em português admitem flexão de gênero e por isso concordam com o substantivo que quantificam. É o caso de “um/uma”, “dois/duas”, “duzentos/duzentas”, “trezentos/trezentas”… até “novecentos/novecentas”. Também os milhares admitem essa flexão, já que um milhar é formado por um numeral entre “um” e “novecentos e noventa e nove” seguido da palavra “mil”. Temos então “dois mil/duas mil”, “duzentos mil/duzentas mil”, e assim por diante.

No entanto, até o momento nenhuma gramática admite o mesmo tipo de flexão quando se trata de “milhão/milhões”, “bilhão/bilhões”, etc. É por isso que não dizemos “uma milhão de pessoas”, ou seja, o cardinal entre “um” e “novecentos e noventa e nove” deve concordar com a palavra “milhão/milhões” e não com o substantivo subsequente.

Ora, se é errado dizer “uma milhão”, é igualmente errado dizer “duas milhões” ou “duzentas milhões”. Afinal, “duas” ou “duzentas” neste caso quantifica “milhões” e não “pessoas” ou “vacinas”.

No entanto, é bem provável que esse modismo se espalhe, ainda mais que está sendo impulsionado por formadores de opinião como os jornalistas, e qualquer dia desses venha a ser abonado por algum gramático. É que muitos gramáticos normativos não entendem que a norma-padrão da língua, por ser uma variedade artificialmente construída apenas para uso formal (ou, dito de outro modo, ninguém fala no dia a dia conforme essa gramática), esta deveria primar pela simplicidade, racionalidade, uniformidade e generalidade das regras, evitando exceções desnecessárias. Em vez disso, tais gramáticos acabam abonando certos usos injustificáveis segundo a lógica apenas porque se tornaram difundidos.

Felizes são os falantes de línguas como, por exemplo, o inglês, o francês, o italiano e o alemão, que não admitem flexão de gênero em numerais exceto para “um/uma” (em inglês nem isso).